quarta-feira, 22 de agosto de 2012

ÍNTEGRA DA ENTREVISTA AO JORNAL O GLOBO

1-A que se refere exatamente esse conceito de “gordura psíquica”?
Ele é um desdobramento da noção de trauma, já que toda e qualquer situação traumática diz respeito a um excesso, seja de dor ou de qualquer transbordamento, que se transforma num outro tipo de gordura que o psiquismo não tem como dar conta. Nem o corpo. Esses excessos dizem respeito àquilo que sobra e que precisa ser “gasto”, pois gera angústias, medos difusos e sintomas das mais diversas ordens, tais como síndromes do pânico, fobias, anorexias, bulimias, compulsões, etc..

2-Qual o papel da pós–modernidade nesse contexto?
As tensões e o mal-estar gerados pelas demandas desse estágio da cultura, onde as práticas estéticas e as pressões sociais nos fazem acreditar que não existe vida fora do mercado, são os principais fatores do que Julia Kristeva, psicanalista francesa, chamou de “As novas doenças da alma”. A peregrinação em busca das últimas novidades para se ter um corpo perfeito, por exemplo, paradoxalmente faz com que cada vez mais surjam na clínica, corpos extremamente adoecidos. O nome clássico disso, na contemporaneidade, é stress.

3-A mídia é muito demonizada por essas tensões. Onde ela entra nisso?
Baudrillard disse que substituímos o “drama da alienação”de Marx”pelo “êxtase da comunicação”. Que a compulsão pelos contatos virou um espetáculo, um signo emblemático de mercadoria e a propaganda, como estilo de vida, dá ilusão de domínio do vazio existencial que caracteriza essa era. Os meios de comunicação são as telas de controle. Os movimentos de liberação dos anos sessenta, por razões comerciais, perderam originalmente suas implicações revolucionárias.Ganharam um caráter opressor e decadente.O fenômeno das “periguetes” é a prova mais contundente do que é ser liberada hoje.

4- Mas os avanços científicos e tecnológicos não trouxeram outra ordem de ganhos?
Claro que sim, mas parece que a ciência e a técnica, sob determinados aspectos, esqueceram o homem. Nossos corpos não foram preparados para dar conta de tantos estímulos e percepções. Paga-se um preço muito alto para acompanhar esse excesso de ofertas. Confesso que às vezes fico confusa e exausta só de olhar a quantidade de coisas que os jornais indicam no final de semana. A sensação é sempre de que perderei muita coisa e ainda bem que já me dispus a perder há muito tempo. Há uma possibilidade de expansão psíquica com essa quantidade de ofertas no mercado? Óbvio que sim. Mas perde-se em qualidade de vida. É preciso conseguir discernir o que realmente cabe na particularidade de cada um, pois a tendência é de massificação.

5-Então haveria uma possibilidade muito maior de instabilidade
emocional diante desses excessos?
Eu diria que há uma dificuldade muito grande de descolamento dessa hegemonia do “você tem que”. Esses códigos , essas exigências da exterioridade, produzem uma precariedade na formação da interioridade. Que ser você realmente quer ser? Os olhos estão todos voltados e capturados para o batom que a atriz da novela usa e que está em todas as bancas, para as dietas que fazem você perder 10 kg em 8 dias, para o salto que miraculosamente sustenta um corpo, para a bolsa do momento e que custa R$4.200,00, mas que você precisa ter, porque esses pequenos detalhes lhe darão uma ilusão de pertencimento. Eu tenho, logo eu sou. A exclusão é ligada à rejeição, à miséria existencial.
6- O que seria essa miséria existencial? 
 Essa busca de reconhecimento através do excesso de objetos, já é sintoma visível de um desasseguramento profundo existencial, de uma angústia decorrente da inconsistência desses preenchimentos. Uma bolsa não vai suprir um vazio que é de outra ordem. Um botox vai apena aplacar a angústia da passagem do tempo, uma lipo não vai acabar com uma insegurança que é fruto de vivências muito mais profundas. E aí as pessoas saem “gastando” para anestesiar o que diz respeito aos incômodos de não se sentirem à altura dessa forma maníaca que o mercado impõe e que é extremamente bem sucedida, pois é contínua. Cristoph Türcke, filósofo alemão que escreveu “Sociedade Excitada”, diz que essa compulsão está de tal forma estabelecida, que uma vez posta em movimento, não pode mais parar. Sua vitória se caracteriza pelo fato de que condena as pessoas a quererem sempre mais uma vez e sempre mais rapidamente.

7- Mas existem ganhos, é lógico, com esse avanços todos. Ou não?
Claro que sim. Estão aí os espelhos que refletem imagens mais apaziguadoras. E a vaidade faz parte da constituição do sujeito Mas o que se discute aqui são os excessos diante dessas novas tecnologias e a distinção entre ser e ter, entre vaidade e cuidado de si, entre o real e o ideal. Freud fez tudo o que pode para mostrar o quanto somos apaixonados pelo disfarce, pelo fantasiar-se de outro e que exibimos nossa maior inventividade quando se trata de ocultar quem somos e aquilo que não funciona bem em nós. Se por um lado todo esse aparato estético esconde o “feio”, por outro esconde, também, o que nos faz sofrer. Entre a imagem e o real, a distância às vezes se torna difícil de ser percorrida, a ponto de caber a pergunta: afinal, quem sofre de que? As pessoas se perdem de si mesmas, privilegiando a superfície, a imagem.

8-Qual a relação que a imagem tem com o poder?
Pois é, depois de tantas lutas para reverter papéis, essa revolução parece estar condenada ao retrocesso, porque ao abrir mão das transformações e práticas políticas significativas que aconteceram graças aos deslocamentos de posições e movimentos produzidos pelo feminismo, essa questão de suposto poder ligada à estética, desperdiça inúmeras conquistas. Ela escraviza e não emancipa verdadeiramente. Pois o que é ser poderosa hoje? O que um salto alto sustenta? O que um vestidinho curto e colante dá conta? Na primeira rejeição ou abandono, queda à vista. Eles não dão conta das inseguranças que assombram as profundezas da alma, das paranóias que se apresentam diante dos fatos complexos da vida. É uma cultura de superfície que não acolhe o fracasso.

9-De que forma esse processo foi se desdobrando? 
 Na ânsia de igualdade de direitos, muitas mulheres se perderam de sua feminilidade e da sua real potência, na medida em que estabeleceram semelhanças com o discurso masculino, tornando-se extremamente fálicas. A questão não passa pelo salto ou o batom vermelho mas por uma outra forma de sustentação que diz respeito ao discurso, a uma mudança de parâmetros, uma verdadeira revolução do pensamento na construção de outra ordem de conhecimento de si, de sua fraquezas e fragilidades e paralelamente, de sua força e potência. Ao invés de uma posição de superfície, competitiva, a negociação de território, a flexibilidade, a delicadeza, uma diferença sutil que estabeleça um novo interesse para o mercado, através da percepção e da sensibilidade.

10-- Que tipo de distorções isso produziu?
Se por vários aspectos tivemos evoluções, por outros temos sido espectadores de degradações. Ao invés de virarem sujeitos de seu próprio discurso, certas mulheres caíram no engodo de permanecerem, apenas, nos velhos lugares de objetos de consumo. Silicones e peitos turbinados viraram sinônimos de “segurança”, o que diga-se de passagem, não só empobreceu as relações afetivas, como, também, produziu essa distorção entre poder e potência, o que acabou causando um distanciamento incomensurável, um abismo, entre mulheres e homens.

11-Quais as repercussões mais visiveis nas relações amorosas? Ndamentais que deixaram um grande vazio, não somente em suas identidades, mas também em suas trocas afetivas, sócio- políticas e existenciais. Ouço no consultório muitos homens que se dizem perdidos, confusos sem saberem como se colocar diante de uma mulher. Está difícil para eles, também, afirmar sua masculinidade.

12-E os sintomas que mais se apresentam na clínica, relativos à essas questões, quais são?
Bom, eu diria que a solidão, a paranóia e a depressão formam a comissão de frente disso que nomeamos como “gorduras psíquicas” Frustrações e decepções fazem parte desse contexto social desestabilizador, na medida em que as pessoas se sentem sempre aquém dos parâmetros exigidos e tem, portanto, uma auto estima baixíssima. O trauma é uma constante na contemporaneidade. Presenciamos algumas saídas mais insistentes: ou há um isolamento para não se machucar mais ainda, ou um desespero pela visibilidade, ou as modalidades de anestesia, que apagam temporariamente a dor. Mas isso não se sustenta

13-O que é ter um corpo sustentável? 
Como foi mencionado anteriormente, há um excesso de preocupação em ter um corpo com “tudo em cima”. Liftings, lipo-esculturas, peles maravilhosas, o que de fato melhora a auto estima.Pois há que se perguntar? Porque não? A questão é que isso cria uma ilusão de onipotência, enquanto ficamos impotentes diante das catástrofes existenciais. Para se fazer frente a elas, precisamos de um a outro tipo de sustentação que vem de diferentes lugares. Uma auto-estima consistente se constrói a partir da infância, da história do sujeito e de que como ele passa por ela. Freud falava em “séries complementares”, que são o conjunto de fatores que formam o caráter e a subjetividade de um ser. Essa imagem de si mesmo é vital para que sobrevivamos aos desabamentos existenciais a que estamos sujeitos. É preciso um narcisismo sustentável e não referido somente à vaidade.Temos que fazer valer nossas pulsões conservadoras e vitais.

14- Isso quer dizer que a saúde do aparelho psíquico é necessária para que a vida biológica exista? 
Certamente. Uma depressão profunda acaba com todas as suas defesas imunológicas, assim como uma paixão pode te levar ao paraíso (ou ao inferno) Nesse sentido, eu diria que não basta “malhar o corpo”. É preciso cuidar da alma. E a maior “malhação” nesse sentido é conseguirmos encontrar um mínimo de equilíbrio entre as forças que nos constituem: somos construtivos e destrutivos, vitais e mortais, benditos e malditos.Somos o que somos, repetitivos, mas também criativos a partir dessas forças que estão em permanente ação dentro de nós.

15-As imagens do corpo visto prevalecem sobre as imagens do corpo vivido?
As imagens de determinadas sensações vividas são relegadas e recalcadas no silêncio do inconsciente e é nesse sentido que a psicanálise tem sua grande eficácia. É num processo analítico que podemos acessar inúmeras dessas sensações e também as fantasias que constituem o que o espelho espelha. Por isso, nós, psicanalistas, associamos permanentemente nosso ofício à arte, que também é tão reveladora do inconsciente, desses lugares de desconhecimento que podem vir a se tornar conscientes e desfazer/refazer esse corpo visto, dando-lhe novas formas e configurações.essas tentativas de igualdade, elas se perderam de características fun

Angela Villela

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

GORDURAS PSÍQUICAS

A sociedade contemporânea vem pondo os corpos à prova. De um lado o corpo-mercadoria, que tem seu prestígio afirmado por meio das técnicas de aprimoramento físico, sem contar as promessas de melhorias oferecidas pela ciência, através da genética. Por outro, um corpo que apesar de todas as chaves para a felicidade se precipita para a destruição. Esse é um corpo problemático, que substituiu sua interlocução com o divino pela medicalização.
Freud fez tudo o que pode para mostrar o quanto somos apaixonados pelo disfarce, pelo fantasiar-se de outro e que exibimos nossa maior inventividade quando se trata de ocultar quem somos e aquilo que não funciona bem em nós. O que nos faz sofrer. Entre a imagem e o real, a distância, às vezes, é difícil de ser percorrida, a ponto de caber a pergunta: quem sofre de que? O que fazer dessa demanda que se instala na forma de uma inquietação reparadora, redentora? Como sobreviver quando falta corpo, num tempo em que, mais do que nunca, os corpo são falados? Esse “corpo sustentável” que tanto se fala hoje, dá garantias de que? Como enxugar o que as lipoaspirações não tem como dar conta? Que gorduras, que sobras, não podem ser resolvidas numa plástica? A questão que se coloca, então, é: para onde vão os restos traumáticos, dolorosos que vem a reboque dessa higienização que afasta a dor, a velhice e a morte? Como perder esse peso e ganhar leveza na alma?
Para discutirmos essas e outras questões, estaremos no ESPAÇO GESTOS, a partir do dia 20/08 até 11/09, durante quatro segundas–feiras seguidas, de 20h15 às 22h.
Rua Conde Afonso Celso, nº99 _Jardim Botânico. (Em frente ao Hospital da Lagoa)
Inscrições pelos tels: 2539-9804 / 2539-0312/ 7717-4158
Até lá.
Angela Bezerra Villela

sábado, 4 de agosto de 2012

JAVIER BARDEM E O ESTRANGEIRO

Quatro da tarde, entro no metrô Estação Botafogo e me dirijo ao Centro. Vagão relativamente vazio. Próximos a mim, dois casais supostamente alemães tagarelam em alto e bom som. Meus ouvidos são atingidos em cheio por esse linguajar rude, forte em sua veemência. Um paradoxo se instala na minha imaginação: apesar do peso na estrangereidade da língua, trazem no corpo a leveza de quem está de férias. Queimados do sol nesse calor invernal, bermudas, camisas coloridas, mochilas nas costas, competem com o barulho típico do metrô, numa falação que desperta em mim uma imensa curiosidade. O que falam? Do que tanto riem? O não traduzido e o intraduzível são muito atraentes por serem impenetráveis e exercem, segundo Laplanche, uma pressão, uma pulsão tradutiva e simultaneamente, impõem reiterados fracassos ao esforço tradutivo. O estrangeiro é aquele que, por nascer num local fora dos meus limites circundantes, é diferente na alteridade.
Aquelas vozes, aquele idioma, produziram uma ruptura no tecido do meu mundo interno, nessa teia de véus, imagens, sentimentos e fantasmas que constituem o pouco de realidade que nos é dado provar. E aí me lembrei de uma entrevista de Javier Bardem, ator maravilhoso e sensível, que soube como poucos expressar essa dificuldade inerente ao estrangeiro. Perguntado se era melhor dizer “eu te amo” em inglês ou espanhol, ele respondeu:
“Quando vou trabalhar numa língua estrangeira é complicado, porque é difícil colocar memória em palavras, pois você não viveu o suficiente naquela língua. Quando você diz “Te quiero”, muitas imagens vem à sua mente e é esse o poder das palavras para um ator. Você tem que se perder nessas imagens. Elas se unificam muito. Quando digo “I love you”, eu nunca disse isso antes. É necessário um tipo de cirurgia. Você tem que colocar a emoção da palavra na versão em inglês. Mas o significado é o que vale.”
O que ele lindamente aponta, é que é preciso desfazer-se da própria subjetividade para imergir e alçar uma posição que atravessa a história. O afeto é o cerne desse movimento. Há um deslocamento do investimento do sujeito, pois no centro do seu dizer, habita o que nunca se disse, no universo dessa frase há um mundo interno onde tais palavras jamais pisaram. Não há memória constituída, portanto. É preciso a presença do discurso de um Outro, é preciso a presença de uma exterioridade no centro da interioridade do sujeito. Ao trazer o estrangeiro para casa, ele transforma a língua estranha, familiar aos seus afetos. A língua natal some e a estrangeira é assimilada ao real, ganhando corpo e emoção.
Não nos damos conta, mas o fenômeno que Bardem evoca é o que normalmente acontece conosco. Mesmo que falemos a mesma língua, nunca falamos uma língua igual. Somos sempre estrangeiros, diante uns dos outros. E esse é um dos problemas vitais nas relações amorosas. Nas paixões, então, a certeza de que falam a mesma língua inebria, cega e ensurdece os apaixonados. Até porque a paixão demanda fusão. E a dor de descobrir que o outro traz no corpo marcas e memórias que produziram outras linguagens, nem sempre é uma experiência agradável. Pois, certamente, numa língua também cabem as linguagens do amor e do ódio, da virtude e da vilania, da delicadeza e da crueldade. Cada um de nós é marcado de diferentes formas na vida e isso nos torna singularmente estrangeiros.
Se um analista não for sensível a essa percepção, ele se torna surdo em sua escuta por não levar em consideração que cada pessoa que se senta a sua frente traz uma língua estranha e desconhecida em sua especificidade. No consultório, se apresentam os mais diversos idiomas, os mais distintos modos de estar na vida, as mais estranhas e complexas linguagens que demarcam diferentes territórios existenciais. Essa a maior riqueza, na minha opinião, do exercício clínico. Estamos sempre pisando em solo estrangeiro, inclusive o da nossa própria presença. A qualquer momento, podemos nos surpreender falando uma língua que nem nós poderíamos suspeitar...

domingo, 29 de julho de 2012

INHOTIM E O IMPÉRIO DOS SENTIDOS

Final de semana em Belo Horizonte.
Uma sobrinha que chegara da Itália após um ano de distância, família reunida, afetos desdobrados e uma cidade que adoro, dando contorno à muitas saudades e papos para colocar em dia.Sensibilidades, portanto,à flor da pele. Poros abertos para as profundidades em perspectiva.
Para além disso tudo,finalmente,a oportunidade de conhecer um dos maiores patrimônios que esse país tem a oferecer ao mundo: Inhotim, um museu a céu aberto,cuja maior obra de arte é a própria natureza, um êxtase na sua força e esplendor, na sua harmonia estética, onde imagens exuberantes, fundidas/confundidas na extensão de um espaço luminoso, não sofrem qualquer tipo de desperdício em suas interferências assombrosas. Numa época em que poucas coisas aderem à vida, a intensidade da criação se mostra intacta e uma força latente,avessa à destrutividade do homem, nos coloca em contato com nossos sentidos mais apurados.Inhotim não é apenas para os olhos, é para as visceras.Não é para a inteligibilidade e sim para as sensibilidades que se abrem para a inexatidão. Para Bernardo Paz, o idealizador de Inhotim,o arquitetõnico parece ser de outra ordem. Ele não permite que nos afastemos das percepções sensíveis, em benefício das percepções tecnológicas, no limite da inteligibilidade.I nhotim é profundamente desestabilizador em sua harmonia, acaba com certezas e nos enche de dúvidas.Através de grandes planos, experimentamos várias sensações determinantes de nossa existência e asseguramo-nos de que aquilo é um grande e insuspeitado espaço de liberdade. É como se ali houvesse uma explosão de sentidos, que nos permite viagens transcedentais, numa súbita multiplicação da matéria, sem que minimamente ocorra a "industrialização do belo" tão temida por Walter Benjamin.Somos alimentados por imagens que não provém da mera observação direta ou da visualização ótica, mas sim dos efeitos das obras no corpo do observador. Há uma reversão de significação, já que devemos, supostamente, perder o fio de nossos raciocínios e sofrermos os impactos que o local produz. Inconsciente e poros abertos no percurso que se nos abre, vivemos o fenômeno da arte, ou seja, temos as próprias noções de espaço e tempo invalidadas. Entramos no território da profundidade, numa relação que não se reduz à experimentação ocular. Pisamos em vidros, atravessamos barreiras de arame farpado, sentamos em cadeiras que são mesas, temos nossas retinas atingidas por corpos mutilados, desrealizamos o convencional e o ideal. A interface que anula a separação clássica das posições observador/observado, abre uma outra configuração instantânea, em que ambos são acoplados numa linguagem codificada (inconsciente) e ao mesmo tempo ambígua, já que são estrangeiras umas às outras, pela interpretação subjetiva das formas. Por isso, a arte é tão próxima e cara à psicanálise, pois ambas nos fazem encontrar outros caminhos discursivos.
Entre tantos infortúnios por nós herdados, inclusive políticos, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito que podemos nos conceder, é não reduzir a imaginação à servidão, pois só ela dá conta do que "pode ser".Os acontecimentos estão lá, os tons, os sons, os rítmos e os encontramos de passagem, através de um universo infinito de sensações que expandem nosso ser. A multiplicação das performances esconde sempre um "a mais", a representação formal sendo nada mais do que uma redução entre tantas outras possíveis.
Gustave Flaubert dizia que "quanto mais telescópios forem aperfeiçoados, mais estrelas surgirão."
Flaubert e Freud adorariam Inhotim...

terça-feira, 24 de julho de 2012

OUTRO MODO

"outro modo de dizer
tudo atravessa o nada
e o que faz acontecer
ambigüidade estabanada
quero tropeçar em erros, acertos acidentais
antagonizar discursos, sujeitos transcendentais
tem outro modo de ser
soa sobre o som
(silêncio)
e o que faço é desfazer
círculo em fala quadrada
quero tropeçar em nada e dizer
quero transformar o erro
em um outro modo de fazer o som
no outro modo
não tem semitom"

Graveola e o Lixo Polifônico

CATIVANTE

Me apresento, eu sou mais um cativante
Fruto de um vendaval
E uma procura incessante
Todo cansaço é meu lar
Basta que encontre
Do feitiço aquela mão
Que me esquente a vida
Não há fronteira ou raia
Limite ou há divisa
Quero tal momento de alimento e água
Só ele segura o vendaval

Tadeu Franco

segunda-feira, 2 de julho de 2012

PARA WOODY, COM AMOR

Poucas coisas na vida me dão tanto prazer como assistir a um filme de Woody Allen. Vocês se lembram da Rosa Púrpura do Cairo, em que a personagem saía da tela e vinha conversar com o espectador? Pois é, eu tenho vontade de fazer o percurso inverso: sair da cadeira, entrar na tela e fazer parte da história. Perdão aos que o acham um chato, melancólico e fóbico e não conseguem enxergar que, exatamente por ele se enquadrar nessas duas categorias, é que a sua genialidade é maior ainda. Ao usar todas as suas “doenças” e transformá-las em obras-primas, Woody consegue fazer o que muitas vezes a própria análise não consegue: tornar risíveis as tragédias que nos constituem. Seu pavor pela morte, suas paranóias, suas manias e obsessões, suas fragilidades e inseguranças, são a matéria-prima de seu fazer artístico. Woody humaniza o ridículo que muitas vezes fazemos questão de esconder. Os seus muitos anos de análise e de vida fizeram dele um ser sábio, que conhece os meandros e as complexidades da alma. Tudo parece tão verdadeiro e simples,como ele demonstra através de um personagem de seu último filme,um cantor de óperas de chuveiro, que só consegue sê-lo nessas condições.Fora desse cenário, a magnitude de sua voz se perde. O que parece impossível de ser conciliado, num passe de mágica é resolvido. Basta levar o chuveiro para o palco. Perfeito. Que metáfora linda do que é o cinema. Nele, o imaginário pode tudo o que a realidade inviabiliza. Essa a grande arte que nos abstrai de tudo que nos cerca no real. Tenho dívidas incomensuráveis com Woody. Ele já me retirou de momentos dificílimos, ao me capturar com os olhos e os ouvidos, perdida de mim mesma horas a fio. Sim, porque quando um filme dele vai entrar em cartaz, curto o antes, o durante e o depois. Sem contar que ainda nos transporta, pelo valor do ingresso, para Manhattan, Barcelona,Paris e agora Roma, fazendo-nos passear pelos lugares mais incríveis como se lá estivéssemos e fossemos íntimos daqueles personagens que ele cria. Com alguns minutos de sessão, parece que já nos conhecemos a tempos, tão próximos ficamos do que se passa na tela. Todas as situações nos parecem familiares, pelo naturalismo que ele imprime às histórias narradas, que nos remetem ao mais simples e banal dos cotidianos. Que atire a primeira pedra quem nunca se assustou com uma turbulência, quem nunca cantou no banheiro, quem nunca teve medo da morte. E ele ainda se apossa de sua nostalgia e nos faz atravessar o tempo, entrando num carro em Paris e indo a uma festa com Hemingway, Fitzgerald, Picasso e outros companheiros da mesma estatura. Assim ele o fez em “Meia-noite em Paris”. Em “Hannah e suas irmãs”,um Michael Caine fantástico encarna um homem casado apaixonado pela cunhada, fazendo-nos experimentar todas as sensações pueris que só um apaixonado pode viver. Agora, em “Para Roma, com amor”, embalados por “Volare”, viajamos pela cidade eterna com a mistura entre ficção e realidade que a contemporaneidade imprime às relações amorosas ou meramente sociais.O que é verdadeiro e o que é falso? Nessa transitoriedade em que as pessoas se encontram, o que vem de dentro e o que vem de fora? Na Roma dos paparazzos , ninguém escapa de dizer o que comeu , aonde e o que fez depois. Isso é de suma importância na auto-gozação hilária que Woody faz de seus próprios pavores. Não esquecendo as inspirações advindas de sua paixão por Bergman, revelada em “Interiores”,” A outra”,etc.... Aliás, misturado ao seu lado cômico,lá está o sensível na perspicácia do olhar observador-artístico sobre a vida, as pessoas e a cultura de cada lugar. Ele é literalmente Zelig , ao captar as nuances e tranportá-las para as telas.E o que dizer das trilhas sonoras? São proustianas, nos levando a outras temporalidades, nos fazendo querer dançar até morrer. Opa!!! Woody mudaria de assunto correndo...
Uma amiga de São Paulo me ligou agora falando que a crítica de lá achou que o filme deixa a desejar.
Woody, acredite, não foi o meu caso, que, aliás, é de amor assumido. O que já ri desse mundo medíocre através da sua inteligência, não há como ser pago.
I love you. Thanks a lot! Come to Rio!

terça-feira, 19 de junho de 2012

AOS PEDAÇOS

Há alguns dias atrás, escrevi nesse blog uma introdução ao tema do amor, abordando a questão da experiência erótica. Ali coloquei a idéia de transitar em meio à essa temática e suas extensões, como o ciúme, as perdas, o luto, etc...Sim, porque para além da alegria de amar, existe a dor. Mal poderia eu imaginar, que na mesma semana os meios de comunicação rasgariam nossos olhos com uma lâmina, assim como Bunûel o fez naquela obra-prima chamada “ O Cão Andaluz”, considerado um dos filmes mais chocantes de todos os tempos e que gerou protestos e indignação onde foi exibido. Num só crime, todos os temas implícitos no propósito inicial.. E nós, que já tão acostumados estamos à barbárie, mais uma vez fomos surpreendidos pelo horror. Hoje, terça 19, Jabor fez uma crônica impecável, daquelas que nos fazem experimentar a frase: “ele disse tudo que eu gostaria de dizer”, que vem não de um lugar de inveja, mas admiração por sua potência, às vezes inigualável, de analisar a tragédia pelos mais diversos ângulos. Portanto, me restaram apenas algumas elocubrações psicanalíticas, inerentes ao meu oficio e à minha condição humana, de refletir sobre o que aconteceu em São Paulo. Que forças açoitaram a alma daquela mulher, fazendo com que matar fosse insuficiente? Pois foi preciso cortar em pedacinhos o sujeito que ela supostamente amava. Que afetos a invadiram, que ódios se sobrepuseram, que interesses escusos se apossaram dela nesse ritual macabro? O ideal de amor romântico que ainda persiste e que não leva em consideração as impurezas que profanam o sagrado, traz à luz a espécie humana em sua mais absoluta ignorância. Aquela que vem do ignorar mesmo, por não querer fazer contato com o inumano que constitui o humano. O discurso científico, se dizendo além dos tabus e dos preconceitos, busca a normalidade e a objetividade. A experiência clínica nos coloca face a face com outras perspectivas. Rejeições e abandonos são duas das mais fortes experiências que podem levar um ser a lugares internos inimagináveis, plenos de ódios e marcas que habitam os subterrâneos do ser. Elize, para além de outras patologias que possivelmente a constituem, foi “atiçada” em suas profundezas, naquilo que suscita amargura, dor e perversão. Faz-se necessário aqui esclarecer, que não se pode justificar um crime e um esquartejamento por conta disso, mas faz-se necessário, também, demarcar com firmeza, que é preciso cuidado com o que se diz às almas esquartejadas ao longo da vida. E Matsunaga parece não ter sido cauteloso nesse sentido. Também ele estava possuído, provavelmente, por suas questões e desejos obscuros. Abriu-se a vários movimentos, não levando em consideração que estava diante de alguém em situação de risco.
Alguém por um triz.E fez-se alvo. Somos feitos de parcialidades. Não temos essa inteireza que tanto buscamos. Podemos vivê-la apenas em momentos sublimes, mas transitórios, porque a morte nos mostra, diariamente, que tudo pode mudar a cada instante. A descontinuidade é característica fundamental da existência e o homem, que ao mesmo tempo que é herdeiro, é também criador da cultura. Diante da moral constituída em que nasce, tem que gerar uma moral constituinte, a partir de experiências dolorosamente vividas. Diante de um passado que muitas vezes condiciona atos, pode reassumi-lo ou recriá-lo. Elize fez a pior escolha: destruiu e esquartejou a família, deixando para sua filha um futuro assombrado por um horror inapagável. Crescer tendo como pano de fundo a montagem desse quebra-cabeça hediondo, colorido pelo sangue paterno e pela monstruosidade do ato materno, será missão de pura dor, que não poderá ser embalada pela suavidade de “Pour Elise”, de Beethoven.

domingo, 17 de junho de 2012

DESCONTEXTO

CAROLINA NINÔ

Não sei o que se passa
E porque haveria de passar?
o que o coração sente
a cabeça desconhece...

Tantas coisas passaram em minhas mãos,
diante dos meus olhos
e eu não vi
e eu não senti
Pelo simples fato de desconhecer
que sentido tem em sentir.

DEUSA, SOLITÁRIA, ETÍLICA, PROCURA...

CAROLINA NINÔ


É como se eu tivesse entrado num túnel e tivessem bloqueado
a saída....
É assim que me sinto quando não estás por perto
quando minha cama se veste de deserto
O meu nu se cobre
E a minha Afrodite
vai dormir embriagada e triste.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

NA MARGEM

EDNA MÉDICI

No seu rosto algumas mulheres mergulham desabaladamente.Outras, mais cautelosas, já tendo apanhado da vida,
chegam pisando de lado, aproximam-se devagar.
Começam por molhar os dedos, depois, com um olhar que se quer
distraído, dispõem-se a banhar os pés (são estas, talvez, as que correm maior perigo – pois, ao senti-las reticentes, suas águas se temperam de encantos luminosos, flutuantes, evanescentes, e em breve se estendem, em pequenas ondas graciosas, ao redor dos tornozelos. Quando dão por elas – pronto!- já estão mergulhadas até o pescoço).
Outras, ainda, (as tolas) acreditam possuir alguma qualidade especial que as tornará necessárias ao mistério das suas profundezas. Como se os seus corpos, ao se banharem naquele líquido, estivessem, por contraste, oferecendo a ele alguma coisa de útil.
Pura ilusão. Não percebem, as desavisadas, as pretensiosas, que, no contato íntimo da sua água com a pele, ela nunca, propriamente, as penetra. Envolve, talvez. Adula, acaricia. Aquece. Recebe, torna macia e cheia de luz – mas nunca, nunca a ela se mistura.
Aos seus olhos, portanto, cada mulher não passa de um corpo, massa sólida a se deslocar de um lado para o outro, com maior graça ou menor grau de desconforto, mas ainda e apenas isso: um objeto fugidio, que nada tira nem em nada lhe acrescenta – um acaso do movimento que, meramente, se dá.
Não eu. Eu não sou como nenhuma _ nem uma única _ dessas tristes mulheres.
Conheço e palmilho, a cada dia, a completa extensão da sua orla. Percorro, de pés descalços, sua órbita, tropeçando em pequenas pedras, cortando a pele no espinhal. Há ocasiões em que sangro profusamente, e é preciso que pare e me sente para descansar em alguma pedra da região desértica que circunda o seu perímetro. Nestas vezes, tenho oportunidade de observar de perto o banho das outras mulheres: seus movimentos, a princípio aéreos e leves; tremeluzindo no rosto, a surpresa e a delícia iniciais; a seguir, o despontar do desconforto, e nas sobrancelhas franzidas, a breve desconfiança da promessa de saciedade que nunca se realiza. E, logo, ao constatarem a perda do próprio reflexo, os músculos que se retesam, os esgares aterrorizantes, a tentativa de fuga entre grunhidos – apenas para, no fim, o corpo, como um menir, ser tragado, inerte, para a areia escura lá no fundo.
E é só por isso _ por ter assistido tantas e tantas vezes a este terrível espetáculo
que reúno em mim as forças para manter a disciplina: por maior que seja a sede, por mais que me deforme e arda no rosto esta máscara de barro ressecado (à noite, sonho com o bálsamo do seu úmido abraço), em suas águas não entrarei.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O DIA DOS NAMORADOS E AS MÚLTIPLAS FACES DO AMOR

1-A EXPERIÊNCIA ERÓTICA

O tema está no ar ou como diz a música: "Love is in the air".
Esse blog, então, postará alguns pequenos textos que dizem respeito ao amor e suas faces paradoxais.Vamos falar sobre inseguranças, posse, ciúme, temporalidades, rítmos e diferenças.Vamos falar, também, sobre dor, perdas e luto. E é claro, sobre ódios. Vide texto já publicado sobre nossas partes malditas. E de poesia, que ninguém é de ferro, não é verdade?
Comecemos pelo erotismo.
O universo das sensações revela as mais obscuras, as mais microscópicas e as mais exacerbadas características de um ser . Os escritores, os poetas , os músicos, os artistas de um modo geral, são os mais genuínos exploradores desse universo, que lhes oferece matéria prima para a criação. Fernando Pessoa levava tão ao pé da letra essa concepção, que dizia, através de um de seus heterônimos, Alberto Caeiro, que “ pensar é estar doente dos olhos...Eu não tenho filosofia. Tenho sentidos.” Também Kant privilegiou as sensações ao desvendar os conceitos de Belo e Sublime. Ele designa o gosto como a noção central do que ele chama de apuro ou refinamento dos sentimentos. A degustação, por exemplo, de um bom vinho e a subsequente apreciação do mesmo, demarcam, com certeza, universos sensíveis diferentes. O gosto apurado é aquele sentido que nos põe em contato com a alma e com o tempo. Um alimento sorvido na pressa não pode ter o mesmo sabor daquele que passa pela experiência da duração, condição fundamental das impressões mais profundas e refinadas. A rapidez é a base das impressões fugazes e a lentidão, a sustentação daquelas que se fixam por ordem de excelência. É só no momento que se sorve lentamente um vinho que se pode apreciar seu perfume e é preciso um intervalo de tempo para que se possa, verdadeiramente, classificá-lo. A sensação, então, refletida após um julgamento da alma , é fruto de um estágio da evolução do tempo gasto na experiência propriamente dita.
O vinho, bebido e cantado durante séculos, é um ótimo referente do erotismo. Os árabes, através da arte de sua destilação, extraiam o perfume das flores, sobretudo das rosas tão celebradas em seus escritos. Isso nos inspira a pensar se a arte de sorver lentamente um vinho não poderia ser equiparada `a verdadeira experiência erótica, onde o prazer não vem da sofreguidão ou da mera voracidade dos instintos que precisam ser saciados na angústia e na pressa, mas sim do sabor que cada gole pode propiciar. É só na temporalidade que vem através das sensações, que se pode extrair o sentido mais profundo do erotismo. A pressa apazigua os instintos, mas não sacia o desejo. Este diz respeito ao campo do refinamento. Coisa difícil nesses tempos de transitoriedade e superficialidade, signos que comandam a modernidade e que caracterizam esses tristes trópicos, onde a urgência é o vetor da maioria das relações.(continua)

terça-feira, 5 de junho de 2012

A PARTE MALDITA QUE NOS HABITA

“Não me apavoram os vastos espaços abertos entre estrelas, além da raça humana. Vem de dentro de mim, mais perto, esse temor a meu próprio deserto. “( Robert Frost)

Apesar de vivermos num país que hoje passa por uma espécie de refluxo econômico semelhante ao que chamamos de “idade de ouro” (até quando?), é impressionante como por outro lado, essa época está tão marcada pela palavra destrutividade. Há poucos meses atrás ficamos chocados com o desabamento dos prédios no centro da cidade, cena assustadoramente simbólica de um tempo pleno de transgressões e queda de valores. As janelas irregularmente colocadas e as vigas desestruturadas , produziram um vazio politicamente obsceno, onde, para variar, “a culpa foi dos outros”. Terremoto na Itália e também aqui, onde os valores caem por terra. Tudo que era sólido está se desmanchando no ar. O mundo não parece estar acabando e sim despencando... Diariamente, somos espectadores de movimentos que nos tiram da superfície e nos fazem mergulhar em abismos silenciosos, em obscuridades e contradições que constituem uma estranha espécie de humanidade que surge por trás das máscaras da perversão . Pela mídia, a tragédia humana torna-se visível em escala mundial, misturando a “diversão compulsiva à publicidade compulsória”, expressão muito bem usada numa crônica recente de Francisco Bosco. As compulsões grassam, na variedade de suas extensões e fazem parte do nosso cotidiano, revelando o embate permanente e ambíguo entre as forças que nos vinculam à vida e às partes malditas que nos habitam. . Essa ambiguidade que caracteriza nossas políticas e nossas escolhas, faz com que a perversão seja um “fenômeno flexível”, que se encaixa perfeitamente em seu lema ” eu sei, mas mesmo assim...”. ou como bem disse Hannah Arendt, na simplificação que leva à banalidade do mal. E pior ainda é ter que engolir a racionalidade que reveste os discursos a respeito dessas banalizações. Nesse sentido, são inúmeras as montagens perversas que nos remetem ao vasto campo das compulsões, onde não existem sujeitos e sim assujeitados, onde não existe autonomia e sim a obediência à imperativos categóricos. Lá dentro, na obscuridade de cada um de nós, há uma voz que diz: faça! Quem comanda as ações é o inconsciente, cuja linguagem não atende aos comandos da razão. Ele é movido por outras demandas, que vem de lugares múltiplos. São forças interagindo, tomando formas expressivas de intensidade visceral, que expressam potências em virtualidade. De que adianta, por exemplo, dizer a um fumante que o cigarro faz mal e a um alcólatra que o excesso de álcool pode levá-lo a uma cirrose? Da mesma forma, será possível dizer a uma mulher “rodriguianamente” apaixonada, que aquele homem não presta? E vice versa? Que efeitos uma fala pode surtir em quem precisa comprar aquele sapatinho, apesar de saber que ele, provavelmente, não vai caber num armário que já abriga uns trezentos pares? E a um jogador famoso, que seus sucessivos desvios de conduta vão transformá-lo num fracassado? De que adianta dizer a alguém que sofre de anorexia, que é preciso comer, quando o próprio corpo não exerce a função de colocar limites entre o dentro e o fora?
Do político corrupto, que rouba dinheiro de escolas e hospitais, à cultura da drogadição, o ilegal caminha ao lado do legal. O alcolismo, por exemplo, não se apresenta como fora da lei, mas é tão ou mais comprometedor do que a maconha, assim como comprometidos são “suas excelências” quando falam do lugar próprio da lei e os juízes desviantes, que encobertos pela toga criam exceções à lei dentro da lei. A perversão é o avesso do bem ético, já que o ato nega a norma. Daí a idéia de desvio.
E nós, o que fazemos de nossas partes malditas? Quem se atreve a reconhecê-las?
Cada um de nós possui suas parcialidades sombrias. Somos sádicos e exibicionistas de vez em quando, masoquistas e voyeristas um outro tanto. Dentro de nós moram todas as possibilidades e intenções, disfarçadas ou não. Somos humanos, demasiadamente humanos, como dizia Nietzsche. Quantas vezes colocamos o outro em posições ordinárias e incômodas? E quantas vezes exercemos os vários outros que habitam em nós e que se satisfazem com pequenas ou grandes transgressões? O que dizer da inveja acompanhada da crueldade, que permeia muitas vezes as relações? Na realidade, em termos mais amplos, qual sociedade não possui estéticas pornográficas, em suas dissociações e transgressões políticas? Existe exercício de poder fora da perversão?
Evidentemente, há graus que diferenciam patologias graves de um simples sintoma e está aí a psicanálise para diferenciar e ajudar quem cai nos excessos. Pois, na verdade, a questão maldita que não cala é psicanalítica: quem nunca cometeu um delito que atire a primeira pedra nessa tela-espelho. E nesse desafio não está implícita uma apologia da perversão, mas está explícita uma provocação à interiorização. Chega de culpar os outros....

domingo, 3 de junho de 2012

POR FAVOR, DESLIGUEM SEUS CELULARES E AS BOCAS, TAMBÉM

Estas as palavras que deveriam ser lidas nas telas, em meio aos avisos que antecedem a maioria das projeções cinematográficas. Esse blog abre campanha e espera adeptos. Porque é impressionante como as pessoas falam no cinema, atualmente... Tal falta de respeito e educação, apenas espelha uma das faces de um dos piores sintomas contemporâneos: a confusão entre o que é da ordem do íntimo e o que é da ordem do público. Ao profanar o sagrado direito de quem paga um ingresso para assistir em silêncio a um belo filme, os falantes invadem sem cerimônia os pagantes, agindo como se estivessem esparramados nos sofás de suas casas, diante dos mais que perfeitos hometheatres que a modernidade propicia, transformando as salas de projeção na “casa da mãe Joana” . O advento das Tvs a cabo e dos DVDs, veio a serviço dessa verborragia que assola o escurinho dos cinemas e que acaba com toda e qualquer possibilidade de quem quer apenas exercer o mais simples dos prazeres, ou seja, a abstração que o cinema produz Como se não bastassem os gigantescos sacos de pipoca e o proct-proct que leva à loucura o espectador que está ao lado, com seu discreto e silencioso dropsinho... Porque os distribuidores não colocam nos avisos que antecedem o filme, o pedido respeitoso de SILÊNCIO ?
Nesse final de semana, vivi na carne essa fatídica experiência, com direito a todos os requintes. Fui assistir a um filme belíssimo, “Apenas uma noite”( Last night), pleno de pausas eloqüentes, ritmos que acompanham um tema que existe desde que o mundo é mundo, ou seja, as injunções do desejo, as escolhas que ele impõe ao amor e a dor que disso advém, tendo como pano de fundo um casal,suas dúvidas e opções.Paralelo ao que se passava na tela, uma outra cena se arrastava: entre uma pipoca e outra, campainhas de celulares tocavam, bocas não se fechavam e emitiam comentários inacreditáveis ao longo de toda a projeção, alguns recheados de preconceitos, outros de pura narrativa do que viam. Tipo: “o que será que eles vão fazer agora?.” “ ..ele mergulhou na piscina de camisa?...” ele vai dar um flagra nela...(????).
De nada valeram os “psius”e sequer a mudança de lugar, pois a mesma cena se repetia nas cadeiras vazias que restavam. Em suma, o que era prazer, virou suplício. E é nisso que vem se transformando o ato de ir ao cinema.
Buñuel, um dos maiores gênios da sétima arte, dizia: “O cinema é como um sonho, que por seu próprio mecanismo nos abre uma pequena janela sobre o prolongamento da realidade. Minha aspiração como espectador de cinema, é descobrir, através de um filme, qualquer coisa que não se pode ver na realidade objetiva.”
Nesse sentido, ele equiparava a experiência subjetiva que um sujeito tem diante da tela, à expansão psíquica que Freud propiciou com a descoberta do inconsciente. Tanto um quanto outro, falavam de algo que inclui a introspecção e o silêncio. Não é à toa que tantos cineastas se aproveitaram da aproximação entre a psicanálise e o cinema.
Não há concentração, não há abstração, não há exercício possível de interioridade que resista à compulsiva tagarelice que tomou de assalto o mais precioso refúgio daqueles que, ainda, apesar de tudo, insistem em sonhar de olhos bem abertos.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

OS POLÍTICOS NO ESPELHO DO ROSA

"Demóstenes".
Geralmente, quando ouvimos um som, uma palavra, associamos a algo ou alguém.
A primeira vez que ouvi o nome "Demóstenes", associei a um personagem da Grécia Antiga.
Quando vi Demóstenes, ainda não associei o visto a alguma figura incomum. Pelo contrário, vi um político comum
Só quando li sobre Demóstenes é que comecei a associá-lo ao elementar e primordial contemporâneo, isto é, à idéia de onipotência que assola nossos cotidianos. Demóstenes presentifica um fenômeno recorrente que se refere a aptidão de,duplicar seu ser e o tomar.como verdade.Exemplo:ao se ver exposto frente às gravações, ele disse: "Esse não sou eu". Quem seria ele então? Esse ou o outro?
É impressionante a quantidade de duplos, triplos, etc... na cena nacional. Hoje, nos relacionamos com fatos políticos sempre com essa dimensão de perplexidade, com esse sentimento de estranheza, sem nos darmos conta de que estamos diante de algo grande demais para conhecermos inteiramente, pois estamos nos relacionando com uma gama imensa de sintomas. Diariamente, nossos ouvidos são invadidos por negações de eus. Somos surpreendidos por outras faces que se revelam nas ironias do destino. Poderíamos dizer que nunca o DSM (manual para profissionais da área da saúde mental) foi tão útil à mídia, na cobertura de assuntos políticos. Seriam todos perversos, psicóticos, esquizo-paranóides? É possível encontrar um lugar onde a política seja revestida de um mínimo de saúde mental e decência? Se hoje clamamos por alguma normalidade na vida pública, é no sentido de uma normalização que implique num mínimo de critérios éticos, coerentes com o que já se denominou de “um fazer político”.
Clément Rosset, filósofo francês, deveria ser lido por Demós-tenes e outros, na medida em que trabalha de forma admirável esse desdobramento de personalidade, que aponta para graves fenômenos psicopatológicos. Ele diz que "o narcisista sofre por não se amar; ele só ama a sua representação....No par maléfico que une o eu a um outro fantasmático, o real não está do lado do eu, mas sim do lado do fantasma..... O eu é um outro, a verdadeira vida está ausente". Para Rosset o "pior erro para aquele que julga ser o seu duplo, mas que é na realidade o original que ele próprio duplica, seria tentar matar esse duplo. Matando-o, matará ele próprio, ou melhor, aquele que desesperadamente ele tenta ser".
Também na literatura encontramos descrições notáveis desse fenômeno, como por exemplo numa passagem do conto de Guimarães Rosa, "O Espelho". Vejam só:
"Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei… Explico-lhe:: dois espelhos – um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era – logo descobri.., era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?..Desde aí, comecei a procurar-me – ao eu por detrás de mim – à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio.Isso ninguém nunca o fizera antes...Olhos contra os olhos. Soube-o_ os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente."
Em sua genialidade, Rosa se encontra com Freud nesse escrito, em que o sujeito se vê numa "outra cena",numa "terra assustadoramente estranha", como se viu Demóstenes ao ter que ficar face a face com seu duplo.
São vários os escritores que tentaram resolver de forma prosaica e poética este enigma do outro, do demoníaco. Machado de Assis também escreveu sobre o espelho e Fernando Pessoa com seus heterônimos, se desdobrou em três: Ricardo Reis, Alberto Caieiro e Álvaro de Campos, além de Bernardo Soares, que é, dentro da ficção de seu próprio “Livro do Desassossego”, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. É considerado um semi-heterónimo porque, como seu próprio criador explica "não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade."
A figura do duplo se notabilizou , também, na história das mentalidades.Primitivamente, o duplo era uma garantia contra a destruição de eu, "um enérgico desmentido à potência da morte" (Otto Rank) e a alma imortal foi o primeiro duplo do corpo. Porém, foi Freud quem mais se aproximou desse espanto com sua conceituação de "O Estranho " (Das Unheimliche), ou seja, aquilo que emerge repentinamente, como uma força demoníaca, irredutível e que, em sua obscuridade, descentra o sujeito e domina o jogo. Os sonhos, os delírios e os sintomas são construções do inconsciente. Todos eles desconstróem as relações entre as coisas, tais como estas se impõem na vida empírica.Freud, ao esclarecer que somos vários e que, portanto, nunca estamos assegurados das manifestações possíveis dessa multiplicidade,antecipa em muitos anos o lado obscuro desses acontecimentos que hoje nos traumatizam e envergonham. Somos testemunhas de eternos desmentidos, de juras de honras falidas, de máscaras que não se sustentam. Vivemos assujeitados à permanentes transgressões dos duplos, triplos, etc.. Luis Cláudio Figueiredo no ensaio “A lei é dura, mas...”, coloca essa questão de modo original, ao falar que vivemos num país de um “jurismo artificioso e esteticista, divorciado das condições políticas subjacentes.” Surge uma idéia de “nação” que é fictícia_ as leis precedem as realidades a serem reguladas. A idéia de justiça passa a ser uma maquiagem de conflitos.
A psicanálise, entretanto, nos propicia um certo apaziguamento face a essa angústia, quando nos ensina que a farsa tem um tempo nesse jogo indomável do inconsciente.Ele tarda, mas não falha, no tropeço das repetições e dos atos falhos, não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe... Como dizia Walter Benjamin, "a história não deve ser vista como o fluxo dos acontecimentos, mas como algo que arranca do fluxo."

segunda-feira, 23 de abril de 2012

PINA E O SER

Acho pobre dizer que fui assistir a um documentário. Pina não pode ser definido só assim. É mais justo dizer que fui assistir a uma homenagem extremamente sensível, prestada por aqueles que tiveram o privilégio de conviver e aprender a se expor com Pina Bausch, uma força desbravadora que ampliou os horizontes da linguagem artística e cultural,através de suas ousadas e intuitivas experimentações. Alguém que se propôs a romper,através de sua arte,com os códigos habituais e consagrados.É importante frisar aqui, que as subversões por ela produzidas não foram feitas apenas na dança. O sentido de sua obra é bem mais abrangente, pois tem a ver com a poesia e acima de tudo, com a vida. Basta ver a citação primordial dela:
“Se as palavras pudessem expressar a vida, não precisaríamos dançá-la.”
Ou seja , é à precariedade da palavra que Pina nos remete. No dicionário, precário é ”aquilo que é pouco estável, incerto, frágil, caráter ou estado do que não oferece estabilidade e segurança”, algo, portanto, que se alinha ao que é humano, ou melhor dizendo, aquilo que é relativo à existência do eu. Somos precários de nascença. Carecemos de outros recursos que nos salvem de nossas misérias existenciais. A espontaneidade da criatividade artística é a possibilidade de um certo desvelamento da existência, da quebra de um diálogo sem som consigo mesmo. Dizia Freud que as pulsões são grandiosas em sua indeterminação e que o corpo concebido pela psicanálise funciona como potência dispersa para as intensidades. Pina Bausch, com sua arte, mostra, freudianamente, que não basta ser um campo de forças. É preciso encarná-lo. É com corpos fragmentados e não com uma totalidade organizada que ela trabalha em sua tentativa de expressar o humano, o sensível.
A homenagem maior que a trupe de Pina promove, é a prova de que confrontado com o Ser, a atitude do homem deve ser de agradecimento, de um “espanto admirativo”, como diz Hannah Arendt, ao falar da análise da consciência em Heidegger, em seu livro "A Vida do Espírito". Segundo ele, o eu misturado às atribulações da vida social, preso a uma linguagem repleta de clichês necessários para a comunicação , se confunde em um mundo externo bem distinto do si. O autêntico, o eu fundamental, se perde. Hannah endossa Heidegger : “Só através do espírito do homem chamado pelo Ser, pode-se transpor para a linguagem a verdade do Ser. “
Todos os depoimentos dos artistas que trabalharam com essa extraordinária mulher, dizem respeito a essa transposição e à expansão de suas potências.
Impossível, aqui, não lembrar de Clarice Lispector, cujo desafio maior na literatura parece ter sido, também, o de ultrapassar as limitações impostas pela palavra , tentando tocar o intangível. “Sou obrigada a procurar uma verdade que me ultrapassa. Quem se indaga é incompleto”
O mundo das aparências tem o ímpeto de se apresentar através do óbvio. Somos convocados por ele a falar. Temos necessidade de explicar e justificar com palavras o que vemos, enquanto que os chineses pensam com imagens atreladas a um signo, vide sua escrita.Essas linguagens, mesmo em suas diferenças, precisam do concreto.A experiência estética, ao contrário, é aquela que transita na obscuridade, na retirada do espírito para um lugar de abstinência do entendimento ou de uma ausência de razão, que permite ao sensorial se manifestar. Quando escuto uma ópera, por exemplo, choro, mesmo sem entender determinadas palavras. Cézanne dizia ser impossível para o espectador caminhar por onde ele havia caminhado. Acho que assim fez um amigo sábio que encontrei ao sair do cinema: “Não entendi nada, mas achei belíssimo”. Perfeito. A função da razão é dar conta. Porém, só o sensível tangencia, só o afeto modifica o afeto. Eis o paradoxo: o discurso é a maneira de apropriação do humano e, ao mesmo tempo é a possibilidade de sua alienação, já que o distancia de outra ordem de introjeção.
Assistir “Pina” e não fazer uma conexão com o processo analítico é impossível. O inconsciente está presente o tempo todo nas expressões de espanto, choque, alegria, amargura e dor. Muito mais do que a arte em si, o filme fala sobre a entrega, a experiência do corpo nas paixões, a obstinação, as inquietações e a disciplina, a paciência com as diferentes temporalidades e ritmos, o que o aproxima (e muito) das vivências de uma análise.
“ Pina” é uma lição de vida, mas dela só podem participar os que não a temem.

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terça-feira, 20 de março de 2012

"SHAME" E AS TREVAS DA COMPULSÃO

Joseph Conrad e seu belíssimo “Coração das trevas", um dos livros que mais me impressionaram na vida, abriram a coluna de José Castello nesse último sábado. E por cúmulo da coincidência, ele estava vivo nas minhas entranhas, pois acabara de assistir a um filme que me colocou direto, como aponta Castello, “frente a frente, de modo tão frontal com a selvageria que, inconscientes, carregamos dentro de nós”, as nossas “partes malditas” abordadas em outro artigo desse blog.
"Shame", o filme, é avassalador. Profundamente incômodo e concreto. Suas imagens nos levam a lugares internos absolutamente inquietantes, até porque ligados àquilo que não se pode tocar, ou seja, o tabu. Li algumas críticas excelentes, mas que obedecem a outros trilhamentos. É sabido que nunca assistimos ao mesmo filme e aqui cabe o olhar que vem da psicanálise.O tema é muito freudiano e rico, para além de uma metáfora do vazio que assola esses tempos viciados em sensações. Estou lendo um livro chamado "Sociedade excitada",do filósofo alemão Christoph Türcke, num grupo de estudos da psicanalista Jô Gondar, em que ele diz que "hoje há uma compulsão `a ocupação e à emissão e que a partir de um determinado nível de excitação, as sensações devem tornar-se aquilo que as faz identificadas como tal e apenas aquilo que é forte o suficiente e não se depara com uma região anestesiada , poderá, doravante, preencher os requisitos da sensação... Surge a suspeita de que a sensação no sentido de "percepção por excelência" não mais se expandiu. " Ou seja, é do trauma que Türcke fala aqui e parece que só diante dele é possivel sairmos da letargia. Diz ele, também, que "segundo Freud, a pele ou membrana, se encontra em permanente adaptação ao mundo exterior, até que por fim ela se encontra tão calcinada pelo efeito da estimulação, que se torna dura e inorgânica,morre, para que todas as camadas mais profundas do organismo sejam poupadas do mesmo destino. A "casca" é , portanto, pele morta, endurecida em legítima defesa, contra a sobre- excitação que vem do mundo exterior. "
O diretor, porém, não se contenta só com esse enfoque, ele vai além. Suspeita-se que uma cegueira maior atinge as retinas que se chocam diante das cenas que se arrastam na tela, ligadas à perversão, ao obsceno, ao horror e no cerne de tudo, ao incesto.
Brandon, o personagem principal, visceralmente vivido por Michael Fassbender, é um não sujeito, assujeitado que é à compulsão sexual. Bem sucedido profissionalmente, bonito e sedutor, ele é fixado , na sua trágica existência, em sexo. No meio do trabalho tem que ir rápido ao banheiro para se masturbar e passa as horas livres conectado a um arsenal virtual pornográfico que, supostamente, o preenche. Não consegue transar senão com prostitutas e mantém um método rigoroso,obedecendo à rituais diários na sua rotina inquebrantável.Acorda, bebe algo, toma banho e vigorosamente se limpa. Com o mesmo casaco, sai, pega o metrô, onde seu olhar vazio só é descongelado quando assedia e é assediado , quando joga o jogo voyeurista que tanto conhece. O espectador é exaustivamente inserido nessa rotina , numa sucessiva compulsão à repetição. Ouvi vários resmungos e até um “que filme chato”. Ouvi, sim, a insuportabilidade do vazio imposto pelo cineasta, Steve McQueen.
Isso rende um bom tempo do filme, até que Brandon uma noite chega em casa e vê que seu apartamento foi ocupado. No banheiro, uma mulher nua joga uma toalha nele e diz. ”Estava com muitas saudades de vc”.
A partir de então, pela intimidade que permeia a relação, o espectador fica se perguntando quem é aquela mulher que, visivelmente , por seu caráter invasivo, produz nele um enorme desconforto.Ela implora para ficar e diz que não tem para onde ir. Ele acaba cedendo e ela fica. A princípio, o espectador desavisado desconfia, mas não sabe, verdadeiramente, de quem se trata, pois as cenas revelam uma cumplicidade, uma intimidade excessiva, de outra ordem. A partir de um convite feito ao chefe , fica claro que Sissy é irmã dele. A invasão anunciada desde a sua chegada, vai, progressivamente, se expandindo, seja pela desordem no “casulo” virado do avesso, seja pela falta de privacidade de Brandon de praticar seus rituais. Ela o surpreende em pleno ato masturbatório. Os gestos de desespero e impulsividade, logo revelam, também, a compulsividade dela, assim como a afetação de Brandon diante daquela Presença. Ao ouvi-la cantar num bar, ele chora e ao vê-la na transparência de sua devassidão, transando com o chefe dele, que é casado, nos primeiros minutos de conhecimento, Brandon é só dor. Outras perguntas, então, passam a insistir:
Que história atravessa aquelas vidas ? Qual o passado delas? Porque o filme se chama "Vergonha?"
É de conhecimento dos psicanalistas que na base de qualquer compulsão está a angústia e que no solo da constituição de um tabu encontra-se a renuncia à satisfação de um desejo .Entretanto, essa renúncia que se expressa em um ritual feito de diversas privações, não é suficiente . O desejo de transgressão parece ser tão poderoso, que, para impedi-lo de surgir novamente, é necessária uma força suplementar, completando o esforço repressor contido no cerimonial de interdição. Essa força demandante, que pede mais e mais, faz parte de um tipo de consciência, produto do sentimento de culpa a que Freud se refere em "Totem e Tabu":" É possível falar de uma "consciência moral" e após um tabu ter sido violado, de um senso de culpa- tabu...Essa consciência pode ser descrita como uma "consciência angustiante." , onde podemos incluir a vergonha.
Para além de todas as abordagens possíveis de "Shame", a hipótese de ligar a angústia que reduz a existência de Brandon a um sofrimento devastador por conta de uma relação incestuosa com sua irmã, me parece a trilha mais instigante a seguir. É algo que ele tenta inultilmente apagar, seja correndo sem destino pelas ruas, gastando o excesso que o perturba, seja livrando-se dos objetos que compõem seu universo íntimo.A compulsão é a sua modalidade de fuga, de apagamento, como o fazem todos os viciados e compulsivos.
Após fracassar na tentativa desesperada de se envolver com uma mulher que ultrapassa algumas de suas barreiras defensivas, solidamente estruturadas,Brandon se entrega aos desvarios do submundo que serve de cenário para sua compulsividade embriagadora. Nesse ínterim, não atende aos apelos de sua irmã; tudo que quer é aniquilar a angustiante insistência pulsional que o invade. Ao sair do torpor anestésico que se encontrava, ouve a voz dela ao telefone chamando-o. Corre para casa e encontra Sissy mergulhada num mar de sangue, após fazer mais um entre tantos cortes já existentes na carne viva também marcada pela dor e pela punição, enquanto que a alma de Brandon se dilacera em pedaços.
O filme acaba no vazio , deixando no espectador a sensação de que o personagem não tem outra saída a não ser repetir, repetir, repetir..trazendo à tona a trágica dimensão da existência de um homem, não apenas contemporâneo, mas de um homem que sofre.
"Shame" ou "Vergonha"é um filme que faz sangrar almas.


COMENTÁRIO:
É amiga, seu texto é preciso e belo. A questão da vergonha (que nosso velho Freud já havia trabalhado com inteligência nos "Três Ensaios") foi muito bem colocada. A vergonha é uma das forças da moralidade que se levantam contra a realização das puulsões em sua versão perverso polimorfa... e isso se liga ao tabu, em sua versão trágica. Realmente, nosso Brandon era apaixonado pela irmã e isso doía-lhe muito, encravado (não sublimado) que estava em sua alma, sem elaboração adequada. E tome sexo, com tudo e todos,as condição de não se envolver e amar!!! Pesado. Na última cena aquela muulher que já havia aparecido parece ainda mais com a irmã e o olhar ressabiado de Brandon, cansado, diz de seu deserto. P)oderia ele se interessar de outra maneira por aquela mulher? Não sabemos. Mas na clíniica acompanhamos as torturas... e desesperanças.
Simplesmente magníficos, seu texto e o filme. Bjs.
Luiz Felipe Nogueira de Faria

terça-feira, 13 de março de 2012

ENFIM SEREMOS SALVOS:
TEMOS UM NOVO MINISTRO DA PESCA

João Bosco Araújo*


Ainda não era Brasil, mas simplesmente terra sem dono, porque índio habita e vive sem se sentir dono, e depois, a partir do século XVI, terra-colônia dos portugueses- proprietários e, tanto aí quanto antes, ora uns, índios, ora outros, portugueses, já conheciam os peixes e os pescavam e os comiam, sem que tivessem Ministro da Pesca ou dele sentissem a falta.
E assim foi por séculos e séculos, até os nossos dias, porque nem índios, nem portugueses, nem brasileiros, jamais tiveram aquele lampejo de gênio, aquele insight, que lhes permitisse a clarividência de que, em se criando o Ministério da Pesca, aí sim, teríamos a bíblica multiplicação dos peixes, a saciar e fartar o famélico apetite do nosso povo.
Nada a reclamar quanto à demora do nascimento de tão brilhante idéia. Afinal, não é em qualquer sociedade, de índios, de portugueses ou de brasileiros, e nem em qualquer século, que há de surgir um gênio do porte e da fecundidade do nosso Lula, prova concreta e irrefutável de que fala a verdade o povão, quando diz que Deus é brasileiro. Se não o fosse, teria talvez permitido que o Homem tivesse nascido, quem sabe, na Croácia, ou mesmo na Macedônia, ou melhor, no Haiti que, com ele lá, certamente não estaria a enfrentar as agruras que hoje enfrenta.
E a pergunta não se deixa calar: como foi possível ao Brasil, subsistir por tão longo tempo sem um Ministério da Pesca? Difícil responder, porque o assunto é por si só extremamente sutil e complexo. Por exemplo, tente o caro leitor descobrir se o tal ministério é mais importante para os peixes ou para os pescadores. Ou ainda, quem sabe, por ser polivalente, pode também valer como moeda de troca, nos arranjos, acordos e negociatas que se processam nos subterrâneos da política, neste caso, sempre com “p” minúsculo.
Não há de ser difícil entender quão duro e complicado terá sido encontrar o homem certo para assumir os deveres e encargos inerentes ao comando de tão importante ministério, cuja complexidade bem aparece, quando se atenta para o fato de que aquele (ou aquela) que viesse a ser o gerente (ou a gerenta) da empreitada, teria de harmonizar águas, peixes e pescadores, elementos tão diferentes, por suas vocações: as águas não querem ser violadas, os peixes querem viver em paz e os pescadores conspurcam as águas e matam os peixes.
Mas, enfim, abriram-se os caminhos e apareceu o homem certo para o lugar certo. Nenhuma importância tem o fato de que, como o próprio falou, não saiba enfiar o anzol na minhoca, uma vez que certamente é pessoa abençoada e inspirada, parente de dois santos homens, Edir Macedo e R. R. Soares, que, por acidente, não se toleram.
Como se isso não bastasse, ainda há a considerar que o escolhido, por mera coincidência, é também Senador da República, figura de proa de um partido político (o inexpugnável PRB), líder evangélico, capaz arrebanhar os votos do rebanho (redundância verbal e política) para abrigá-los no aprisco onde um molusco manda com mão de ferro.

*Diretor Executivo do Amazonas EM TEMPO.

quinta-feira, 8 de março de 2012

COMENTÁRIO DE FILME

A Separação de Asghar Farhadi,
Por Luiz Felipe Nogueira de Faria

Em mais um enérgico e delicado trabalho, o diretor do aclamado “Procurando Elly” nos convoca uma vez mais a pensar sobre a questão que concerne aos efeitos dos ditos e (principalmente) dos não ditos nos encontros que cada um realiza consigo mesmo e com os outros, no que isso implica em compromisso com a palavra e com os atos, com as escolhas contidas nas crenças e com o desejo embutido nas opções éticas. No limite, uma discussão sobre os impasses do humano na cultura, nas relações tecidas no dia a dia, sobre a ambiência que promove as dores e ódios, enfim, sobre o compromisso com a verdade, ela mesma um objeto sempre mutante e arredio às posições que buscam a afirmação de naturalidade e neutralidade.
É possível propor que um dos vários impactos do filme diz respeito ao fato de todos os personagens que compõem a trama se mostrarem frágeis e, de certa forma, solicitando acolhimento. Ao mesmo tempo, todos são duros nas ações e nos enfrentamentos, exceção talvez das crianças, cuja perplexidade e ternura deixa entrever um futuro menos sombrio, embora elas estejam expostas, e de forma cruel às intempéries que caracterizam os (pesados) conflitos que se desenrolam, assim como a figura do pai idoso e adoentado, macabra imagem da decrepitude e da dependência ao outro.
O filme começa com um plano curto no qual alguns documentos de identidade são fotocopiados, deixando entrever rostos e nomes ainda por ganhar corpo e densidade. Prossegue com um plano médio fixo dando a ver um casal em litígio com cada um dos cônjuges expondo seus argumentos em torno da idéia de se separarem. A câmera se posta do ponto de vista de um juiz que deverá arcar com uma sentença decisória a respeito das reivindicações apresentadas. E esse juiz interroga o casal, especialmente a mulher (Simin), sobre os motivos da reivindicação que em última instância é sua. Ela argumenta que prefere ir para o exterior (o visto foi conseguido) porque será melhor cuidar da filha em outras circunstâncias... (a que circunstâncias ela se refere?) O marido (Nader) diz que tem que cuidar do pai velho e que isso já emotivo suficiente para tomar outra posição. Seu apego ao pai é pungente, mas logo ficamos sabendo que a filha do casal é também motivo de litígio.
O juiz parece adotar o ponto de vista da tradição e se alia aos valores que indicam a conduta honrada de Nader, como pai e esposo. Tudo permanece em suspenso e inconcluso e ambos se retiram. Ocorre que nós espectadores já fomos fisgados e comprometidos, pelo simples fato de que na maior parte desta longa cena Simin e Nader a nós se dirigirem, com seus olhares e pedidos. Ambos apresentam falas razoáveis e aceitáveis, ambos sofrem e exigem o reconhecimento de seus motivos e aspirações. Solicitam nossa escuta e nossa afetação. Aí as identidades não mais se reduzem a formalidades paralisadas num retrato sem vida. Ao contrário, se fazem intensas tomando os corpos e transgredindo as medidas ditas racionais.
No prolongamento da trama surgem outros personagens não menos sofridos e carentes de reconhecimento, inclusive social. Também mais um casal, não mais de classe média (como Nader e Simin): Hodjat, que aceita com muitas dúvidas o trabalho de cuidar do pai de Nader e Razieh desempregado e ludibriado (assim parece) pelo antigo patrão. Ambos afeitos à tradição religiosa (o alcorão é sua verdade e referência ética e até moral). Nesta família também há uma criança (bem mais nova) e, como veremos, silêncios tão necessários quanto perigosos...
Por conta do que poderia ser classificado como um “mal-entendido”, mas num contexto onde há uma perda dolorosa para Hodjat e um ato impensado e violento de Nader, estes dois casais estarão frente a frente nos tribunais, no hospital, em suas casas, no colégio onde uma das crianças estuda. Sempre em litígio, numa atmosfera acusatória onde as piores culpas funcionam como peçonhas mortais, seja para salvaguardar a unidade dos casais, seja para desnudar ainda mais os restos que insistem em esgarçar as carnes mais doloridas desta suposta unidade.
Um ponto a discutir é: se há necessariamente em toda a palavra um lugar de silêncio, e se em todo silêncio há alguma fala que implica o irrepresentável, os encontros humanos, inclusive os mais potentes, não poderão escapar de seus avessos, fato que marca a positividade do (não/mal) dito para os sujeitos. Nesta história de gente comum observamos que todos mentem para si e para os outros, todos escondem e precisam esconder algo, todos se deixam capturar no sintoma da culpabilização a todo preço (seriam essas as “circunstâncias” que Simin queria evitar no seu intento de sair para o exterior?). Ao mesmo tempo é no atravessamento das trilhas que constituem esse sintoma que algo diferente poderá se fazer. Nesta linha, a ternura sábia das crianças (Termeh e Somayeh), é bastião de saúde e da alegria/criação possível. Quando os adultos se permitiram abandonar a rede de orgulhos e recalques e funcionar com a coragem das crianças alguma coisa da ordem da verdade pôde acontecer.
É sempre interessante ver um cinema que se esforça em presentificar os afetos e a complexidade das histórias sem apelar para o maniqueísmo, sem as clássicas dicotomias bem/mal, verdade/erro normal/patológico, e, no caso específico dessa história, moral religiosa/moral laica. Muito bom constatar que os movimentos de câmera flagram suspiros, tensões, intensidades indizíveis e não se contentam em contar com imparcialidade uma história, mas se esmeram em nos envolver, inquietar, forçando nossa presença interessada. Todo o elenco está afinado, as crianças com semblantes maravilhosos... Teria Asghar Farhadi desejado contar esta história do ponto de vista das crianças?
“A Separação” ganhou o Oscar. E daí? Titanic também ganhou . O que fica, mais do que a premiação e o sucesso é a grandeza de expor, a partir de um estudo específico de uma certa atmosfera cultural , questões que a ultrapassam em muito, obrigando-nos ao pensar. Resta-nos agradecer a generosidade deste gesto.

quarta-feira, 7 de março de 2012

ANGELINA JOLIE E A SAPUCAÍ

Fevereiro é um mês dionisiaco no Brasil, pelos dias ensolarados que iluminam esse excesso pulsional dos trópicos, intensificado pelo clima carnavalesco que invade o país. Como disse Bataille a respeito do erotismo,"desse transe de órgãos que desarruma uma ordem, um sistema."
A sexualidade desabrida dos brasileiros espanta os estrangeiros,criando
sempre um imaginário de possibilidades hibridas, a partir dessa miscigenação persistente e pelas manifestações explosivas que impregnam as narrativas e relatos dos viajantes, desde os primeiros que aqui chegaram. Se Hemingway dizia que Paris é uma festa,o que diria ele dessa orgia coletiva que toma de assalto milhões de pessoas , desse ar quente que traz uma "luxúria pegajenta" (Gilberto Freyre), em oposição ao frio seco e árido de outros polos do planeta?
Nesse contexto carnavalesco, o corpo mais do que nunca é um lugar, uma espécie de palco onde se encenam múltiplos eventos. As fantasias se materializam e as máscaras correm à solta."Seja vc quem for, seja o que Deus quiser...." já dizia uma velha canção. O carnaval libera vários outros que guardamos dentro de nós.Só que tudo acaba na quarta -feira de cinzas. Ou não?
No contexto surreal em que vivemos hoje, onde a ficção cada vez mais se confunde com o real,o que sobra, por exemplo de verdade em um corpo? Aliás, nunca se falou tanto em corpo e nunca faltou tanto corpo. Farsas, montagens, próteses , sim, é com o que mais nos deparamos.A maioria é regida pelo "princípio do dever", pelo "eu tenho que ", provenientes das exigências estéticas que vem do mundo exterior e que produzem um adestramento rígido do corpo, sendo este submetido a uma disciplina férrea ligada ao "princípio do desempenho" , que tanto agrega quanto segrega, inclui ou exclui ao mesmo tempo.Quem consegue escapar dessa homogeneização e se libera desse "dever ", tem que estar preparado para pagar o preço da autonomia. Existe uma frase de Merleau-Ponty que é bem apropriada a essa perspectiva: "Se se trata do corpo do outro ou de meu próprio, não tenho como conhecê-lo senão vivendo-o, quer dizer, retomar por minha conta o drama que o atravessa e me confundir com ele."
Lembro-me de uma cena fantástica ao final do filme "Ligações Perigosas", em que Glenn Close, numa interpretação soberba, senta-se diante de um espelho e começa a retirar a maquiagem da Marquesa de Merteuil e a expressão que surge é a do desespero, da infelicidade e horror que aquele excesso excondia.A dura experiência com a falha que divide a superfície da profundidade corporal, é encenada magistralmente pela atriz. A distância fria que a separava de si própria é percorrida e suprimida nesse des-mascaramento e a realidade de sua monstruosa existência se revela.
O simbolismo da cena é forte, porque todos usamos máscaras.Das mais diversas formas e circunstãncias.Muitas vezes encobrimos a raiva com um sorriso, a dor com o humor, a amargura com uma piada, a decepção com o cinismo e por aí vamos...O que dizer, então, das máscaras dos políticos corruptos, com seus sórdidos sorrisos enquanto roubam descaradamente?
Haja máscara.
Nesse carnaval mesmo, um fenômeno que vem crescendo pouco a pouco, teve o auge de sua excerbação. Além das figuras hilárias de alguns blocos, o que mais me chamou a atenção foram as "botocudas e preenchidas". Angelina Jolie não veio ao carnaval do Rio e portanto, não pode imaginar que foi a inspiração mais intensa nas imagens midiáticas.Sua boca foi onipresente. Do baile do Copacabana Palace à Sapucaí, quase todas asmulheres desfilavam bocas e maçãs salientes em rostos protéticos e patéticos. A galera do Saara, ano que vem, pode faturar horrores, vendendo não só máscaras , mas bocas. Quem sabe, peles avulsas, também.
Nas breves zapeadas televisivas que dei, resguardada pelo sossego da Serra da Mantiqueira, confesso que ao cabo de um tempo estava exausta, pois aquelas caras esticadas e ampliadas como num filme em 3D pareciam alucinações , sem uma expressão que as diferenciasse. Rostos homogêneos e estereotipados, corpos siliconados em sua exibição farsesca.
Homens e mulheres que perderam o limite entre o ridículo e o real do tempo. Corpos que já foram desconstruídos e capturados pela imagem de um ideal que, cada vez mais, os desapropria de suas verdades temporais.
Pobres mortais!! Pobre exército de Brancaleones ,quixotescamente lutando contra os moinhos de vento.Xô, morte...

quinta-feira, 1 de março de 2012

IMERSÃO

IMERSÃO Encontro-te boquiabortado Sobre o espaço incontido de mim Percebo o desencontro afetivo-conceitual da nossa associação impermanente Remonto cenas pré-edípicas do amor que oscila, oscila Identificando / Desidentificando Percorro o tempo imemorial entre padecimento e êxtase. E.M.M.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

ÍTACA

Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Posidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito. tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

Constantino Kabvafis (1863-1933)
in: O Quarteto de Alexandria - trad. José Paulo Paz
POSTADO POR SABIRA ALENCAR

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Da turba à toga

Repetindo a rotina matinal, abro o jornal e leio as manchetes do dia. Não sem uma má vontade confessa. Salvo exceções, esse ritual tem tornado o meu café da manhã cada vez mais amargo. A lama que transborda das páginas contamina o sabor da refeição. Mais eis que hoje, exulto: a corregedora do Conselho Nacional de Justiça, Eliana Calmon, saiu vitoriosa após  batalha travada  durante três meses, por conta da tentativa do STF de cassar os direitos atribuídos ao CNJ de investigar os desvios de conduta dos magistrados. Não só essa mulher que muito nos orgulha vence o corporativismo que se alastrou na in-justiça brasileira, mas, acima de tudo, vencemos nós, a opinião pública que, finalmente, fez valer sua indignação.

Todos os  atentados  à nossa dignidade e inteligência vêm de longa data. Há poucos meses atrás, o ministro Luis Fux, do STF declarou um voto que ia contra o clamor popular pela aplicação da Lei, em “respeito à Constituição”.Perfeito. Mas como fica o respeito ao cidadão que paga suas contas em dia? Não se esqueçam que alguns nazistas ao serem julgados em Nuremberg, quando perguntados porque  fizeram tudo aquilo, responderam, através de um imperativo categórico que excluía toda e qualquer reflexão, que apenas cumpriam o seu dever.

A mesma indignação nos assaltou tempos atrás quando um outro ministro, desse mesmo tribunal, respondendo às criticas relativas à sua decisão de liberar os bicheiros investigados numa Operação da Polícia Federal, disse que “pouco se importava com o barulho da turba, de acordo com seu convencimento.” Nada tão surpreendente, que soe tão estranho assim, na medida em  que esse tipo de desprezo que ele expressou pela opinião pública, tem sido a tônica das decisões de, no mínimo, seis representantes  do STF. Lembro-me que a palavra “turba”, na ocasião, me capturou. Fui ao Wikipédia e confirmei minhas suspeitas: turba, entre outras coisas, é uma “multidão desordenada.”

Não há café que desça. Além de ter que engolir as decisões absurdas e descontextualizadas dos Senhores da Lei, que são incapazes de, no seus julgamentos, levar em consideração os apelos da população por uma aplicação mais rigorosa da legislação, temos que ser incluídos entre os “desordenados”.

Ora, senhores, isso é  abusar demais de nossa paciência. Afinal, em termos de “desordenação” seus companheiros da Justiça e do Congresso estão imbatíveis. Por mais que nos esforcemos, jamais chegaremos perto do desempenho e da união que eles têm demonstrado para ser uma turba. Diante de todos os fatos políticos vergonhosos que tem acontecido nesse país, estamos muito mais para ovelhas que vão passivamente para o matadouro do que para turba.

Em dezembro de 2004, numa entrevista ao O Globo, Giorgio Agambem, ao falar de suspensão da lei, disse que estamos vivendo hoje, a falência de todo e qualquer estatuto jurídico. Segundo ele, as políticas contemporâneas  acabaram com o que chamamos de um “corpo político.”

Freud, em “O Futuro de uma Ilusão”,  dizia que “as massas podem ser induzidas ao trabalho e a suportar as renúncias que a existência impõe, se forem influenciadas por indivíduos que possam fornecer um exemplo e a quem reconheçam como líderes. Tudo correrá bem se esses líderes forem pessoas com uma compreensão interna (insight) superior das necessidades da vida e que se tenham erguido à altura de dominar seus próprios desejos instituais”.

Tanto Agambem quanto Freud   falavam  da passividade das massas.

Será que Vossas Excelências  leram Hannah Arendt ?

Também em sua obra poderiam encontrar a possibilidade de uma série de reflexões sobre suas decisões. Em “Responsabilidade e Julgamento”, por exemplo, os senhores poderiam se deparar com a seguinte questão : “O que acontece à faculdade humana de julgamento quando confrontada com ocorrências que significam o colapso de todos os padrões costumeiros e, assim, não possuem precedentes, no sentido em que não são previstas nas regras gerais, nem mesmo como exceções a essas regras?”

Enfim, senhores  ministros não vou me estender, pois o espaço é pequeno.

O que quero lhes dizer, fundamentalmente, em meu nome próprio e de todas as pessoas dignas e decentes desse país, é que hoje a turba lavou a alma e que ao julgarem, tomem cuidado com o seu “convencimento”. O CNJ está aí....

Jazz

Não guardo de você, nenhuma lembrança que mereça poema.

       Não lembro de beijo estonteante, nem de contato viscoso,

                                                        melado.

       Mas lembro de um trompete: Miles Davis.

       A música, teu único presente, guardo: Barrosinho.

       Nada mais, nem sorriso, nem doçura.

       Nunca mais dividir prato de comida, nem conta, nem cômodo.

       Mas lembro da música apresentada ao ouvido: Wayne Shorter.

       Daquele som de Lee Morgan perfurando o coração distraído,

       Emprenhando definitivamente o corpo meu.

                                    Edna M. Médici
                     

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Minimalismo

       Basta um quarto cheio de música.
       Basta o cheiro de velas e incenso de rosas,
                                        o álcool,
                                        o torpor,
                                a abstinência sexual,
                                a solidão desértica.
       Basta meia respiração, só um pouquinho de ar
       Pra levar um sentimento capenga do coração até o cérebro.
       Tenho o mínimo.
       Quero o mínimo.
       É preciso não destinguir entre dia e noite.
       É mister não dizer palavra,
             não caminhar,
             nem olhar pelas gretas da janela o acontecimento das ruas.
       Basta um cigarro,
             um pedaço de chocolate
             e um canto pra desmontar o corpo
       Conheço o mínimo,
       Prefiro o mínimo
       Sem compromisso, nem conforto, nem afetos, nem expectativas.
       A salvo, completamente a salvo!

                                 Edna M. Médici

As mulheres e o poder

 COMO ENCADERNAÇÃO VISTOSA, FEITA PARA ILETRADOS A MULHER SE ENFEITA, MAS ELA É UM LIVRO MÍSTICO QUE SOMENTE  A ALGUNS, A QUE TAL GRAÇA SE CONCEDA, É DADO LÊ-LA”                                                                                                                                 (Péricles)


Entrou em cartaz essa semana um filme do judeu romeno Radu Mihaeileanu, “ A fonte das mulheres”, que tem como inspiração a peça “Lisístrata”, de Aristófanes, onde mulheres exercem seu poder através de uma greve de sexo, o que faz com que os maridos se submetam aos seus desejos. Pegando carona no humor grego, Radu cria uma fábula ambientada na Turquia contemporânea, sobre a dimensão política das mulheres, ou como ele mesmo diz, uma alegoria sobre a recente ascensão feminina à liderança governamental em diversos países, como o Brasil, onde a força do voto feminino na última eleição teve uma representação de cerca de  30,3 % do eleitorado.  Entretanto, o que pode ser interpretado como uma grande vitória, após o longo processo feminista de dissolução de hierarquias que caracterizou a construção das sociedades, paradoxalmente, imaginamos que também pode haver um retrocesso desastroso se não refletirmos, de antemão, sobre as condições e possibilidades do que representa esse momento histórico, já que poderemos ser condenados a abrir mão de transformações e práticas políticas significativas, advindas de tantas lutas que tiveram como efeito vários deslocamentos de posições. Pois a política, que sempre teve seus conflitos e antagonismos performatizados por sujeitos com classe, raça, sexualidade e gênero diferenciados, na verdade, paralelamente, foi regida em sua maior parte por um único signo, o da masculinidade. Agora, uma rara oportunidade surge, não no que diz respeito especificamente ao gênero, um homem ou uma mulher, mas sim no que se refere à criação de uma outra mentalidade.  E o que se quer dizer com isso?  É claro que não há, aqui, a possibilidade de uma análise histórica profunda de como foram demarcadas outras territorialidades, assim como é evidente que, para que isso acontecesse, ocorreram radicalizações, exageros e equívocos, partes inevitáveis das tentativas de superação de um lugar de menos-valia e de inferioridade, que nunca deixaram de fazer parte da longa jornada  feminista.  Na ânsia de igualdade de direitos, muitas mulheres se perderam de sua feminilidade e da sua real potência, na medida em que estabeleceram semelhanças com o discurso masculino em relação ao poder, tornando-se extremamente fálicas.  Se por vários aspectos tivemos evoluções, por outros temos sido espectadores de degradações. Ao invés de virarem sujeitos de seu próprio discurso, certas mulheres caíram no engodo de permanecerem, apenas, nos velhos lugares de objetos de consumo. Silicones e peitos turbinados viraram sinônimos de “segurança”, o que diga -se de passagem, não só empobreceu as relações afetivas, como, também, produziu essa distorção entre poder e potência, o que acabou causando um distanciamento incomensurável,  um abismo, entre mulheres e homens. Nessas tentativas, elas se perderam de características fundamentais que deixaram um vazio, não somente em suas identidades, assim como em suas trocas afetivas, sócio- políticas  e existenciais. Sem falar no desejo impossível de igualdade, já que este seria uma injustiça para com os diferentes. Isso fez com que  ganhos relativos à equivalência realmente se concretizassem.

Essa a questão que está posta em jogo. A velha pergunta que Freud não conseguiu responder _ “ Afinal, o que quer uma mulher?_ pode ser aqui atualizada: Afinal,o que querem  com o poder?” Repetirão o mesmo ou vem para assumir a diferença?  Conseguirão escapar das artimanhas e seduções tão fortemente demarcadas pelas características masculinas nos lugares de poder?  A presença feminina na Presidência, por exemplo, trará um  outro olhar sobre a nossa realidade sócio-política? Que ética prevalecerá?  Continuaremos apenas a ver a prevalência do capital sobre os valores?

Assim sendo, parece decisivo questionarmos esse momento,   face à tarefa tão significativa de democratização radical que ele representa. Derrida dizia que a grande vitória política será quando houver uma desconstrução dos registros vigentes. E isso não diz respeito somente ao gênero, masculino e feminino, mas sim a uma mudança de parâmetros, uma verdadeira revolução do pensamento na construção de outra ordem de conhecimento. Ao invés de uma posição confrontativa, competitiva, a negociação de território, a flexibilidade, a delicadeza, uma diferença sutil que estabeleça um novo interesse para o mercado, através da percepção e da sensibilidade. Essa a questão relativa à feminilidade.  Um outro tipo de força como instrumento de poder,   uma outra estética,um “ exercício da potência”,  radicalmente oposto ao “exercício de poder”. Potência no sentido de forças que são elementos, inclusive, de socialização. Ao invés de nomearmos essa possibilidade como um tipo de política pós feminista, o que traz a idéia de algo resolvido,  podemos caracterizar essa oportunidade como um “momento do feminismo”, como bem diz Heloísa Buarque de Hollanda.

Há poucos meses atrás, uma ousada artista franco-marroquina, Majida Khattari,questionou com muito humor a questão da burca que invade a cena cultural francesa e os clichês de um lado e  de outro. nos deixando como provocação a seguinte pergunta: que lugares são esses que podem ser  ocupados pelas mulheres nas políticas contemporâneas? Estarão elas em pleno exercício de sua liberdade e potência, ou continuarão sendo uma mera costela de Adão? Num desfile- performance , ela colocou na passarela uma mulher totalmente envolta num véu, enquanto que na contramão, caminhava uma outra modelo praticamente nua, tentando equilibrar-se num salto altíssimo. Para ela não há diferença entre uma e outra, já  que a primeira vive restrita à uma tradição, enquanto que a outra é  prisioneira do modelo ocidental de beleza. Para a esperta Majida, a questão é o meio-termo “Já estamos num país laico, proibir é um absurdo, não vai resolver o problema. Ao contrário, vai radicalizar a situação e criar um conflito maior.“ Majida parece falar desse lugar intermediário que não está pronto e que não diz respeito à disputa de poder e sim à potência da criação de novos lugares. Quem dera  que  a provocação da artista marroquina surtisse efeito nos corações, mentes e corpos de uma grande parcela de mulheres e que ela pudessem seguir à risca  a escrita de Ana Cristina Cesar:

“ O céu, quando entra em mim, o vento não faz voar,   esses papéis.”