sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

As mulheres e o poder

 COMO ENCADERNAÇÃO VISTOSA, FEITA PARA ILETRADOS A MULHER SE ENFEITA, MAS ELA É UM LIVRO MÍSTICO QUE SOMENTE  A ALGUNS, A QUE TAL GRAÇA SE CONCEDA, É DADO LÊ-LA”                                                                                                                                 (Péricles)


Entrou em cartaz essa semana um filme do judeu romeno Radu Mihaeileanu, “ A fonte das mulheres”, que tem como inspiração a peça “Lisístrata”, de Aristófanes, onde mulheres exercem seu poder através de uma greve de sexo, o que faz com que os maridos se submetam aos seus desejos. Pegando carona no humor grego, Radu cria uma fábula ambientada na Turquia contemporânea, sobre a dimensão política das mulheres, ou como ele mesmo diz, uma alegoria sobre a recente ascensão feminina à liderança governamental em diversos países, como o Brasil, onde a força do voto feminino na última eleição teve uma representação de cerca de  30,3 % do eleitorado.  Entretanto, o que pode ser interpretado como uma grande vitória, após o longo processo feminista de dissolução de hierarquias que caracterizou a construção das sociedades, paradoxalmente, imaginamos que também pode haver um retrocesso desastroso se não refletirmos, de antemão, sobre as condições e possibilidades do que representa esse momento histórico, já que poderemos ser condenados a abrir mão de transformações e práticas políticas significativas, advindas de tantas lutas que tiveram como efeito vários deslocamentos de posições. Pois a política, que sempre teve seus conflitos e antagonismos performatizados por sujeitos com classe, raça, sexualidade e gênero diferenciados, na verdade, paralelamente, foi regida em sua maior parte por um único signo, o da masculinidade. Agora, uma rara oportunidade surge, não no que diz respeito especificamente ao gênero, um homem ou uma mulher, mas sim no que se refere à criação de uma outra mentalidade.  E o que se quer dizer com isso?  É claro que não há, aqui, a possibilidade de uma análise histórica profunda de como foram demarcadas outras territorialidades, assim como é evidente que, para que isso acontecesse, ocorreram radicalizações, exageros e equívocos, partes inevitáveis das tentativas de superação de um lugar de menos-valia e de inferioridade, que nunca deixaram de fazer parte da longa jornada  feminista.  Na ânsia de igualdade de direitos, muitas mulheres se perderam de sua feminilidade e da sua real potência, na medida em que estabeleceram semelhanças com o discurso masculino em relação ao poder, tornando-se extremamente fálicas.  Se por vários aspectos tivemos evoluções, por outros temos sido espectadores de degradações. Ao invés de virarem sujeitos de seu próprio discurso, certas mulheres caíram no engodo de permanecerem, apenas, nos velhos lugares de objetos de consumo. Silicones e peitos turbinados viraram sinônimos de “segurança”, o que diga -se de passagem, não só empobreceu as relações afetivas, como, também, produziu essa distorção entre poder e potência, o que acabou causando um distanciamento incomensurável,  um abismo, entre mulheres e homens. Nessas tentativas, elas se perderam de características fundamentais que deixaram um vazio, não somente em suas identidades, assim como em suas trocas afetivas, sócio- políticas  e existenciais. Sem falar no desejo impossível de igualdade, já que este seria uma injustiça para com os diferentes. Isso fez com que  ganhos relativos à equivalência realmente se concretizassem.

Essa a questão que está posta em jogo. A velha pergunta que Freud não conseguiu responder _ “ Afinal, o que quer uma mulher?_ pode ser aqui atualizada: Afinal,o que querem  com o poder?” Repetirão o mesmo ou vem para assumir a diferença?  Conseguirão escapar das artimanhas e seduções tão fortemente demarcadas pelas características masculinas nos lugares de poder?  A presença feminina na Presidência, por exemplo, trará um  outro olhar sobre a nossa realidade sócio-política? Que ética prevalecerá?  Continuaremos apenas a ver a prevalência do capital sobre os valores?

Assim sendo, parece decisivo questionarmos esse momento,   face à tarefa tão significativa de democratização radical que ele representa. Derrida dizia que a grande vitória política será quando houver uma desconstrução dos registros vigentes. E isso não diz respeito somente ao gênero, masculino e feminino, mas sim a uma mudança de parâmetros, uma verdadeira revolução do pensamento na construção de outra ordem de conhecimento. Ao invés de uma posição confrontativa, competitiva, a negociação de território, a flexibilidade, a delicadeza, uma diferença sutil que estabeleça um novo interesse para o mercado, através da percepção e da sensibilidade. Essa a questão relativa à feminilidade.  Um outro tipo de força como instrumento de poder,   uma outra estética,um “ exercício da potência”,  radicalmente oposto ao “exercício de poder”. Potência no sentido de forças que são elementos, inclusive, de socialização. Ao invés de nomearmos essa possibilidade como um tipo de política pós feminista, o que traz a idéia de algo resolvido,  podemos caracterizar essa oportunidade como um “momento do feminismo”, como bem diz Heloísa Buarque de Hollanda.

Há poucos meses atrás, uma ousada artista franco-marroquina, Majida Khattari,questionou com muito humor a questão da burca que invade a cena cultural francesa e os clichês de um lado e  de outro. nos deixando como provocação a seguinte pergunta: que lugares são esses que podem ser  ocupados pelas mulheres nas políticas contemporâneas? Estarão elas em pleno exercício de sua liberdade e potência, ou continuarão sendo uma mera costela de Adão? Num desfile- performance , ela colocou na passarela uma mulher totalmente envolta num véu, enquanto que na contramão, caminhava uma outra modelo praticamente nua, tentando equilibrar-se num salto altíssimo. Para ela não há diferença entre uma e outra, já  que a primeira vive restrita à uma tradição, enquanto que a outra é  prisioneira do modelo ocidental de beleza. Para a esperta Majida, a questão é o meio-termo “Já estamos num país laico, proibir é um absurdo, não vai resolver o problema. Ao contrário, vai radicalizar a situação e criar um conflito maior.“ Majida parece falar desse lugar intermediário que não está pronto e que não diz respeito à disputa de poder e sim à potência da criação de novos lugares. Quem dera  que  a provocação da artista marroquina surtisse efeito nos corações, mentes e corpos de uma grande parcela de mulheres e que ela pudessem seguir à risca  a escrita de Ana Cristina Cesar:

“ O céu, quando entra em mim, o vento não faz voar,   esses papéis.”

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