segunda-feira, 2 de julho de 2018

O DUPLO , UMA INTERPRETAÇÃO


                            
A questão do duplo, por ser fascinante, é intensamente explorada na literatura e na psicanálise. De Shakespeare à Dostoievsky, passando obviamente por Freud, a atração que esse fenômeno exerce fez com que grandes obras fossem escritas.  Dostoievski, por exemplo, em “O Duplo”, criou um protagonista, Golyádkin, um funcionário público de baixo escalão, que afetado por um transtorno psicológico fixa-se num duplo de si, um outro Golyádkin , que vem transtornar sua vida e seu trabalho. Dostoievski constrói uma narrativa genial que vai misturando real e alucinação, até o ponto em que as flutuações da consciência e da demência do personagem sucumbem à objetividade do real. De acordo com estudiosos, no que diz respeito aos mitos literários, desde a Antiguidade os duplos eram representados por pares idênticos ou sósias. Só a partir do século XVI o duplo passou, também, a representar o heterogêneo, ligado à questões relacionadas à subjetividade. Nesse tipo de duplo, o que se tem é a alma humana buscando-se a si mesma, já que acontece uma divisão do eu, resultado de uma quebra de unidade. Shakespeare, em sua obra, utiliza também o mesmo recurso para desmascarar as contradições do discurso soberano, quebrando, astuciosamente, as convenções dramáticas com o duplo disfarce sendo usado como uma estratégia subversiva para problematizar as noções de género e de poder.  Já Freud foi muito mais longe. Seu texto sobre a inquietante estranheza, problematiza o Unheimlich, onde ele afirma a presença de um outro, estrangeiro e ao mesmo tempo familiar, que nos habita. Em 1915, o artigo “O Inconsciente” foi o ponto culminante de sua obra e representou o esforço mais radical operado por ele, ao forjar uma representação coerente dos conteúdos e do modo de funcionamento do aparelho psíquico. Habitado sobretudo por traços mnésicos, fragmentos desses traços e imagens muitas vezes aleatórias, tal combinação tende a formar uma cena, o fantasma inconsciente. Toda essa trama complicada se torna mais densa quando a ela se soma o trauma, um excesso que causa excitações provindas de fora, que são suficientemente poderosas e que rompem uma barreira de proteção, um escudo de uma área limitada. E aí, o que acontece? Um fenômeno bem conhecido, avisa Freud: a dor. E como ele já havia explicitado em 1911, em “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”, sabemos que no final das contas, o princípio de realidade trabalha em função do princípio de prazer e não contra ele. Essa conclusão tem papel crucial na tentativa de elucidação da compulsão à repetição. Ou seja, porque precisamos repetir o que é traumático? Bem, e porque estou tergiversando sobre o duplo e os desdobramentos dele na literatura e na psicanálise? A culpa é do filme “O Amante Duplo”. Ao sair do cinema o que mais ouvia era: “...não entendi nada, que filme maluco, o marido era o psicanalista ou era o irmão gêmeo, este existia mesmo ou era criação da cabeça dela?” Como li outro dia, a atividade poético-metafórica de um filme consiste na transformação das coisas numa visibilidade que apenas a estética pode apreender e descrever. Inicialmente, a verdade reside na base de todas as coisas.Com a sequência do filme, a complexidade evolui e no decorrer dele os diálogos tornam visíveis o que supostamente é o real das coisas em si faladas. Mas as palavras e os desdobramentos da história nos convidam a um duplo movimento. A tentativa de tradução dos fatos, pouco a pouco se confunde com uma ambiguidade sintomática, formadora do discurso da cisão. Essa ambiguidade choca os não iniciados no discurso psicanalítico e dá margem a profundos mal entendidos. O script reproduz-se de forma a confundir mesmo e nisso apresenta vantagens, devido à atividade da fantasia, que suscita a curiosidade no espectador.,
 Muito já se escreveu sobre o enquadre e a situação analítica. No filme, a recusa do analista em continuar o tratamento se dá pela ameaça ao íntimo que deve ser preservado, já que uma das condições de transferência é a abstinência, a neutralidade, que garantem a exigência técnica da superfície de projeção transferencial. A contratransferência, no caso, poderia tornar o intimo obsceno. E ele se interdita. Mas é exatamente esse obsceno que a personagem procura. Ao tornar-se marido, o analista perde essa possibilidade porque não está mais no registro da transgressão. Ele supre o que diz respeito a uma presença cuidadosa e que diminui a solidão de Chloé. Aí temos duas possibilidades no filme:  a primeira, que eu particularmente descarto por ser simplista demais, é que ele de fato tem um irmão gêmeo, que vira o duplo perverso do antigo analista, atendendo às demandas de Chloé ou então, ela cindida, criando delirantemente o analista que precisa para curar suas dores, através da duplicação /projeções especulares que faz na figura do marido. Eu optei pela segunda hipótese. Achei-a mais interessante. Através de uma certa violência e erotismo, Chloé cria um outro percurso e vai desbloqueando a sexualidade reprimida e suas intensidades à deriva. Esse duplo vêm a serviço de uma causa: integrar partes dolorosas e traumáticas que não foram introjetadas ao longo da vida dela. Integrar a gêmea que vivia dentro dela e que produz as projeções e duplicações histéricas que a atormentam. É preciso revivenciá-las num outro âmbito para, então, superar seus traumas de abandono materno e principalmente do fato de que, inconscientemente, ela nutria uma culpa profunda por ter “engolido” o feto da irmã gêmea durante uma gestação mal sucedida. Chloé, literalmente, busca a cura e o seu tornar-se mulher, talvez de uma forma desordenada, caótica para o espectador, mas ao mesmo tempo, perfeitamente factível. Como diz Clément Rosset”,a necessidade de duplicação é necessária à assunção de um real cuja unicidade crua é instintivamente pressentida como indigesta. A coisa só é tolerável se mediatizada, desdobrada. Não há nada nesse mundo que se possa experimentar assim, diretamente. O gosto pela complicação diz respeito ao horror do único”. Belo filme.
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Angela Bezerra Villela,
Em 01/07/2018