segunda-feira, 14 de maio de 2012

OS POLÍTICOS NO ESPELHO DO ROSA

"Demóstenes".
Geralmente, quando ouvimos um som, uma palavra, associamos a algo ou alguém.
A primeira vez que ouvi o nome "Demóstenes", associei a um personagem da Grécia Antiga.
Quando vi Demóstenes, ainda não associei o visto a alguma figura incomum. Pelo contrário, vi um político comum
Só quando li sobre Demóstenes é que comecei a associá-lo ao elementar e primordial contemporâneo, isto é, à idéia de onipotência que assola nossos cotidianos. Demóstenes presentifica um fenômeno recorrente que se refere a aptidão de,duplicar seu ser e o tomar.como verdade.Exemplo:ao se ver exposto frente às gravações, ele disse: "Esse não sou eu". Quem seria ele então? Esse ou o outro?
É impressionante a quantidade de duplos, triplos, etc... na cena nacional. Hoje, nos relacionamos com fatos políticos sempre com essa dimensão de perplexidade, com esse sentimento de estranheza, sem nos darmos conta de que estamos diante de algo grande demais para conhecermos inteiramente, pois estamos nos relacionando com uma gama imensa de sintomas. Diariamente, nossos ouvidos são invadidos por negações de eus. Somos surpreendidos por outras faces que se revelam nas ironias do destino. Poderíamos dizer que nunca o DSM (manual para profissionais da área da saúde mental) foi tão útil à mídia, na cobertura de assuntos políticos. Seriam todos perversos, psicóticos, esquizo-paranóides? É possível encontrar um lugar onde a política seja revestida de um mínimo de saúde mental e decência? Se hoje clamamos por alguma normalidade na vida pública, é no sentido de uma normalização que implique num mínimo de critérios éticos, coerentes com o que já se denominou de “um fazer político”.
Clément Rosset, filósofo francês, deveria ser lido por Demós-tenes e outros, na medida em que trabalha de forma admirável esse desdobramento de personalidade, que aponta para graves fenômenos psicopatológicos. Ele diz que "o narcisista sofre por não se amar; ele só ama a sua representação....No par maléfico que une o eu a um outro fantasmático, o real não está do lado do eu, mas sim do lado do fantasma..... O eu é um outro, a verdadeira vida está ausente". Para Rosset o "pior erro para aquele que julga ser o seu duplo, mas que é na realidade o original que ele próprio duplica, seria tentar matar esse duplo. Matando-o, matará ele próprio, ou melhor, aquele que desesperadamente ele tenta ser".
Também na literatura encontramos descrições notáveis desse fenômeno, como por exemplo numa passagem do conto de Guimarães Rosa, "O Espelho". Vejam só:
"Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei… Explico-lhe:: dois espelhos – um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era – logo descobri.., era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?..Desde aí, comecei a procurar-me – ao eu por detrás de mim – à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio.Isso ninguém nunca o fizera antes...Olhos contra os olhos. Soube-o_ os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente."
Em sua genialidade, Rosa se encontra com Freud nesse escrito, em que o sujeito se vê numa "outra cena",numa "terra assustadoramente estranha", como se viu Demóstenes ao ter que ficar face a face com seu duplo.
São vários os escritores que tentaram resolver de forma prosaica e poética este enigma do outro, do demoníaco. Machado de Assis também escreveu sobre o espelho e Fernando Pessoa com seus heterônimos, se desdobrou em três: Ricardo Reis, Alberto Caieiro e Álvaro de Campos, além de Bernardo Soares, que é, dentro da ficção de seu próprio “Livro do Desassossego”, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. É considerado um semi-heterónimo porque, como seu próprio criador explica "não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade."
A figura do duplo se notabilizou , também, na história das mentalidades.Primitivamente, o duplo era uma garantia contra a destruição de eu, "um enérgico desmentido à potência da morte" (Otto Rank) e a alma imortal foi o primeiro duplo do corpo. Porém, foi Freud quem mais se aproximou desse espanto com sua conceituação de "O Estranho " (Das Unheimliche), ou seja, aquilo que emerge repentinamente, como uma força demoníaca, irredutível e que, em sua obscuridade, descentra o sujeito e domina o jogo. Os sonhos, os delírios e os sintomas são construções do inconsciente. Todos eles desconstróem as relações entre as coisas, tais como estas se impõem na vida empírica.Freud, ao esclarecer que somos vários e que, portanto, nunca estamos assegurados das manifestações possíveis dessa multiplicidade,antecipa em muitos anos o lado obscuro desses acontecimentos que hoje nos traumatizam e envergonham. Somos testemunhas de eternos desmentidos, de juras de honras falidas, de máscaras que não se sustentam. Vivemos assujeitados à permanentes transgressões dos duplos, triplos, etc.. Luis Cláudio Figueiredo no ensaio “A lei é dura, mas...”, coloca essa questão de modo original, ao falar que vivemos num país de um “jurismo artificioso e esteticista, divorciado das condições políticas subjacentes.” Surge uma idéia de “nação” que é fictícia_ as leis precedem as realidades a serem reguladas. A idéia de justiça passa a ser uma maquiagem de conflitos.
A psicanálise, entretanto, nos propicia um certo apaziguamento face a essa angústia, quando nos ensina que a farsa tem um tempo nesse jogo indomável do inconsciente.Ele tarda, mas não falha, no tropeço das repetições e dos atos falhos, não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe... Como dizia Walter Benjamin, "a história não deve ser vista como o fluxo dos acontecimentos, mas como algo que arranca do fluxo."