Sobrevoa o pais
uma pergunta que não quer calar: de onde vem tanto ódio? Amizades desfeitas, intolerância
à diferença, discussões atravessadas de agressividade, transbordamentos de
afetos que não podem ser resumidos e muito menos simplificados. Espanta-me a
ausência absoluta de uma escuta ou de uma fala psicanalítica, que coloque o
povo brasileiro no divã. Muitas
coisas estão fora da ordem e do alcance mais significativo do que acontece no
íntimo de pessoas massacradas por informações contraditórias, que geram um caos
psíquico que não propicia um saber de fato e sim, opiniões advindas de um
fanatismo improdutivo e ignorante, entre o “lado de lá e o lado de cá”. Sabedoria é uma palavra rara nos dias de
hoje. O país foi assaltado de várias formas, inclusive em seu bom senso e
lucidez, que certamente devem estar em algum banco suíço. O povo é que foi golpeado, usurpado em seus diretos de cidadão que paga impostos altíssimos e não tem um sistema de sáude e de educação dignos. Haja visto o que acontece no mometo com epidemias gravíssimas , muitas vezes causadas por falta de saneamento básico nas regióes mais pobres do Brasil. O olhar que os estrangeiros tem do país que vai sediar um dos maires eventos do mundo é de horror. Certos aspectos humanos estão mais ativos do que nunca. Por
exemplo, que tal tentarmos ver esse ódio que grassa, como algo que subjaz a um
ressentimento histórico que habita a alma do povo brasileiro? Quantas
esperanças frustradas, quantos crimes impunes, quanta injustiça e dor com
perdas, quanto sufoco passado em filas intermináveis, quanta falta de cuidado
do governo com seu povo sofrido? Quanta banalização, quanta espera na porta de
hospital, quanta luta por um colégio para o filho, quanta violência, quanta
insegurança, quanto medo, enfim, isso tudo que acaba tornando a vida sem
brilho, desesperançada. Essa é a porta de passagem para a idealização e o
ressentimento, para a mágoa de quem se vê logrado por alguém em quem deveria
poder confiar. “O ressentido não pensa: eu me enganei e sim: fui enganado.”(
Kehl, 2004, pag 49 ). Embutida na palavra ressentimento, está a idéia de que o
dito não foi validado. Algo prometido não foi cumprido. É o que Ferenczi, que
ampliou Freud, chamava de “desmentido”. E se tomarmos essa premissa no âmbito
do sintoma social em curso, onde um sistema assistencialista afirma que “nunca antes na história desse país
determinadas coisas aconteceram”, em que “dádivas” foram ofertadas como moeda
de troca por votos, o que esperar agora que delatores desesperados com suas
próprias peles entregam o ouro dos bandidos? Tudo isso e mais alguma coisa desaguou num
ódio intenso e incontido. É o ressentimento como defesa necessária para a integridade
narcísica do próprio eu. Como um refúgio protetor contra o desamparo iminente ,
o ressentimento impede a desestruturação do psiquismo face ao excesso de ódio.
Esse afeto se manifesta por termos que abrir mão de tantas idealizações. O
momento atual é propício a esse “derrame dos res-sentidos”, já que ele funciona
como um catalisador de vivências muito mais profundas e pessoais, arcaicas
talvez, que são despejadas nesse lamaçal político .A memória de tempos não tão distantes em
que ficamos assujeitados aos horrores de uma ditadura, faz com que o pavor do
retorno das mesmas condições se atualize. Ainda não “inquecemos”, como diz
Renato Mezan. A ferida não está de todo cicatrizada, principalmente para os que
pagaram o preço mais alto, a tortura e a morte de pessoas queridas. Sentimentos
de vingança estão à flor da pele e como
sempre , onde há ressentimento há um
devedor, um outro que deve pagar. E
quanto a quem é devedor, há uma multiplicidade de divergências. As paixões
permeiam as opiniões e o resultado disso é uma grande cisão destrutiva.Se pensarmos historicamente, tivemos um
período de estabilidade econômica e política, mas, socialmente, a violência
nunca deixou de existir. E quando falo de violência, não me remeto só àquela
que é física, mas a todos os aspectos que envolvem o desrespeito ao ser humano.
O que, obviamente, demonstra que o ressentimento sempre está presente. Alguém
deve algo a alguns. O ressentido acha que perdeu, injustamente, porque lhe tomaram. É a vítima que foi prejudicada que reivindica
o reconhecimento que lhe foi recusado. Esse é o sentimento que reverbera nas
panelas e nas janelas, é ele que ressoa nos gritos de “ladrão”, no piscar das
luzes a cada vez que há uma escuta de discursos vazios, de inverdades repetidas
à exaustão por essa ditadura partidária que desonrou nosso país. O
ressentimento autoriza moralmente atitudes que a moral condena sob o estigma da
maldade, prestando-se bem à simplificações dos conflitos que se instalam.
Diante da imoralidade política atual, não há constrangimentos. O povo que urra nas ruas considera-se acima
da hipocrisia social. da corrupção e do cinismo vigentes. E se sente livre para
clamar: ou somam ou sumam.
Angela Villela
Psicanalista
prosafreudiana.blogspot.com