segunda-feira, 28 de março de 2022

Relatos selvagens

Catástrofe, Trauma e Medo

A cabeça fervilha, o corpo dói, a mão treme hesitante.
Escrevo ou não? Lembro de Marguerite Duras e sua dor: “Como pude escrever isto, que não sei nomear e que me assombra quando releio?”
Como adentrar a complexidade dos fundamentais problemas que ora nos atingem? Temo minhas fragilidades diante do caos. Desse trinômio de múltiplas determinações, ou seja, trauma, catástrofe e medo, que faz emergir afetos tão profundos, vitais e culturais, o que brotará? Preciso me distanciar afetivamente para ter uma visão mais ampla dos fatos ou me aproximo dos meus ódios, da minha ira, do que é substancioso em mim para chegar as vias dos fatos? Quem sabe onde chegarão esses descaminhos? Meu estado de espírito não faz promessas harmoniosas. E depois? Não poderei voltar atrás. O dito pode estar condenado à esterilidade. Ou, quem sabe, ao alvo certeiro. Mas essa dúvida faz parte do risco, do desafio de quebrar o entorpecimento que me assombra, o que acaba por fortalecer e validar minha ousadia. de perguntar: afinal, que mundo é esse feito de epidemia e guerra? 
O momento estranho que vivemos, trouxe um estilo muito pouco familiar, onde “o humano, demasiadamente humano” só traz equívocos e contradições dolorosas. Como deter  esse tempo de onde escorrem gritos e sussurros de dor? O horizonte de brutalizações não vai parar.  Os argumentos estão sendo substituídos por jogos de força violentos. A máquina digital, as armas e o capital se uniram numa estranha aliança que pode aniquilar nossa liberdade e nos tornar mortos-vivos. É preciso ampliar e dilatar as fronteiras nessa ausência de horizontes, para que escoem nossas energias vitais, caso contrário teremos derrames escarlates invadindo os órgãos que garantem nossa vitalidade. A escrita é uma saída, por ser um reflexo da vida e a indignação uma energia transbordante, um rio que corre pelas veias abertas, como diz Galeano.
Então é isso. Preciso gastar os excessos. Escrever.
Um petardo atingiu a humanidade. Assim, de súbito. Do nada, não. Do tudo, sim. Da audácia e do destemor dos inescrupulosos até nossa impávida inércia e apatia, fomos tomados de assalto por um terror inominável, trazido por uma substância obscura, que, obstinadamente, trouxe desrealizações múltiplas, irrespiráveis e abruptamente mortais. Viramos massa de manobra de seres indizíveis. Como lidar com o que se desconhece e que é extra-humano, que descentraliza, tira todos os eixos, arranca as vestes certeiras da ciência, desnudando a ignorância que nos reveste, nos apavorando num cara a cara com a morte? De repente, viramos escárnio para ela. Nós que tudo sabíamos, ficamos socráticos. Só sabemos que nada sabemos. De nada adiantaria nos colocarmos acima da realidade solapadora de vidas. Viramos protagonistas de destinos nada poéticos. Assim, não mais que de repente, fomos igualados em raça, cor, sexo, gênero e status. Tudo condensou-se num sistema agudo e incrivelmente veloz, onde a última coisa que pode ser negada é a realidade. Só um louco o faria. E o faz. O homem comum se sente aterrado perante algo que não entende. Como bem descreve Ortega e Gasset, ao penetrar numa catedral gótica, que o fez descobrir que “ é realista demais, pois quando se olha para cima, a terra se escapa, como só ocorre quando a água do mar leva a areia que está debaixo dos nossos pés.. Eu não sabia que dentro de uma catedral gótica habita sempre um torvelinho, isto é, que apenas pus os pés no interior, fui arrebatado do meu próprio peso sobre a terra.” 
Essa analogia ilustra, metaforicamente, o quão arrasante e destruidora pode ser a experiência humana face à constatação de um mundo real. Estamos vivendo uma mudança civilizatória, com desdobramentos erráticos que nos conduziram a uma fragmentação identitária. Perdemos tempo nos preocupando com coisas futuras, sem conseguir digerir as presentes. Há um desgaste psíquico absurdo, quando tentamos dar conta do excesso que perdas sucessivas nos causam e uma impossibilidade de lidar com tantos lutos. Angústia, depressão, desespero, pânico, melancolia, obsessão compulsiva têm sido o retrato de parte das sintomatologias que se apresentam na clínica contemporânea, sendo o medo o cerne de todas essas inquietações. É como se a aterradora experiência de insegurança face à morte, tivesse rompido, abruptamente, a promessa de finitude que a modernidade, com escudos protetores tecnológicos, jurou materializar. A frustração das esperanças, trouxe a impotência e a insegurança como insultos, segundo Bauman. A incalculabilidade das catástrofes vindas da natureza e dos jogos de poder, fizeram com que a humanidade desse de cara com seus desatinos pois, aleatoriamente, a lei do retorno se fez presente. Os males produzidos pelo homem insensível e onipotente, apresentaram uma conta cruel e impagável. A sobrevivência e o sentimento de preservação de si, limitaram-se, então, à uma repetição maníaca para manter-se vivo, protegido em uma existência dissociada do vínculo social ordinário, em detrimento da identidade íntima, numa tentativa de controle extremo do vazio experimentado que, inevitavelmente, o conduziu à perda substancial do mundo real, no qual deixou de investir. Sua pele se tornou uma fronteira rígida e perigosa, para garantir que não seria afetado pela adversidades, mas tudo isso acabou por despertar sentimentos ambíguos, que desembocaram no que diz respeito à pandemia, em intensa culpabilidade referente ao contágio. Se me misturo, mato ou morro. Se me isolo, sofro. Não é só a catástrofe que nos assombra, mas também a impossibilidade de mudar as coisas e isso produz uma espécie de expropriação de si mesmo, uma perda da antiga existência. O outro próximo virou uma ameaça mortal. Quais os desdobramentos desses registros?
A pandemia colocou o mundo inteiro num regime de exclusão e de duração, num tempo em câmara lenta, num congelamento tenso e doloroso, repleto de movimentos ordinários, que aos poucos, foram se tornando característicos da vida cotidiana, levando à fadiga e ao cansaço da rotina. Não há nuances de tempos felizes, nem de esperanças a curto prazo.  Essa espécie de temporalidade tirou o brilho dos acontecimentos, pela sensação de se estar acorrentado a um si mesmo, que deprime, traumatiza e traz a sensação de esmagamento da existência. Apesar das redes amenizarem o isolamento exigido pelo surto pandêmico, a perda da comunicação intersubjetiva contribuiu para um aumento dos estados depressivos e de uma desapropriação daquilo que sempre foi familiar e humano. Um tempo de aniquilamento psíquico e de corpos afetados por vazios intensos. Essa queda na depressão, que não se confunde com tristeza e o fato de permanecer fechado nela, leva à horrível sensação do ser completamente sozinho, a uma falta de pertencimento, sendo este um desejo inerente ao humano. Uma pessoa se torna o que é por meio daquilo que ela experimentou ao longo da vida, da concentração dos fatos vividos. Pois, para além da herança genética que trazemos ao nascer e aos acontecimentos subsequentes ao longo dos anos, somos frutos dos sistemas sociais e políticos nos quais estamos inseridos. Mas de que forma os fatos vinham sendo consumidos ou vividos antes da pandemia? Que mundo estava em curso? Que discursos predominavam na clínica? É historicamente visível, que fomos, paulatinamente, sendo parte de uma massa de excitações, um híbrido de sensações, como bem diz Christoph Turcke, que não têm como ser digerido em sua essência. Um excesso nos tomou. O mundo tecnológico acentuou a tirania do tempo, a velocidade virou fonte essencial aqui e alhures e em todas as frentes, tornou-se exigência de vida. Ao acontecer isso, ou seja, quando a intensificação do tempo devora o próprio tempo, os ritmos se alteram e o psiquismo só absorve parte de um volume cumulativo, gerador de angústia. O que fica fora do campo de absorção se faz trauma, porque não foi metabolizado. O celular, símbolo maior desse universo, potencializou obsessões, instrumentalizou seres, colonizou o cotidiano, não poupando vida pessoal, sequer a familiar. A sobrecarga virou angústia, moeda a ser paga por conta das “vantagens” trazidas pela comunicação imediata. Quem foi capaz de responder eficientemente, na hora exata, às demandas de produção, foi bem avaliado pela lógica do sistema. Foi visto como guerreiro. Só que esse fluxo intenso criou “indivíduos em permanente excesso”, segundo R. Castel, que vivem no exagero, na competitividade e que pouco a pouco, de guerreiros passaram à escravos de psicotrópicos reguladores, que os deixavam sempre em condições energéticas plenas para o desempenho. Salvo raras exceções, esse tipo de individuo fabricado por um sistema infernal, foi ganhando solidão e comumente, depressão. Sem contar o uso excessivo de álcool, com danos secundários que o anestesiavam, ajudando-o a ir se libertando do seu centro de exigências, que o tornavam um estrangeiro para si mesmo. Evidentemente, tal apaziguamento é sempre provisório, porque ninguém consegue viver fora de si próprio por muito tempo. David Le Breton, diz que “desaparecer de si é uma tentação contemporânea”. Penso, por outro lado, que o trauma é o vilão que produz a dor insistente que leva a essas permanentes tentativas de fuga. O mundo e o humano entraram em descompasso e de repente, no meio desse caos, chegou a catástrofe. Com o surgimento da Covid, essas estratégias e considerações se tornaram absolutamente ineficazes, fadadas ao fracasso, já que não há como fugir de um grande e devastador acontecimento, como o que pegou o mundo desavisado. Ninguém poderia imaginar o radicalismo da experiência que iríamos viver. Por mais que o cinema nos mostrasse ficções terríveis, jamais nosso imaginário as viu como algo que fosse ser o real que iria se nos apresentar. Pensávamos como deveria ser monstruoso passar por cenas que as telas exibiam. Fechávamos os olhos para não ver os horrores trazidos pelo Mal. Agora, diariamente, somos lembrados não mais que a morte e o Mal existem, mas que podem estar ao nosso lado, no copo que usamos, no abraço amigo, no botequim que frequentamos, nas cadeiras do cinema onde éramos platéia, na areia da praia, no salão onde nos embelezávamos, no consultório de nossos médicos de confiança, nos teatros, etc... Apavorantemente, fomos sendo surpreendidos com a palavra contágio e sendo esclarecidos que, em todo e qualquer lugar que encostássemos nossos supostos invioláveis corpos, conheceríamos de perto a mistura entre trauma e terror.
O corpo humano e o psiquismo não foram preparados para dar conta de tanta carga e justamente essas sobras não introjetadas (Ferenczi) é que foram se constituindo como excessos traumáticos. Na verdade, não só individualmente. Hoje nos transformamos num “coletivo pandêmico traumatizado”, que se arrasta, desesperadamente, à espera de um alento que aponte saídas para um pesadelo jamais pensado: além de uma pandemis, a guerra. Não temos como mensurar agora, nesses tempos diabolicamente cruéis, quantas pessoas traumatizadas se apresentam na clínica. O caos ganhou uma dimensão gigantesca, porque vem associado a um outro excesso: o medo. Que por sua vez, é revestido de uma angústia inenarrável, de difícil dissolução. A palavra, mais do que nunca, se fez precária e a escuta acolhedora, que legitima todos esses afetos, se fez necessária de forma contundente.
Uma questão de fundamental importância para a clínica psicanalítica, sublinhada por Freud, diz respeito aos limites e possibilidades da teoria diante de provações como essas que ora vivemos e à necessidade de novas construções a partir de um conjunto de indicações fornecidas pelos processos viscerais que atravessam a humanidade. Em vários períodos críticos da história, aconteceram “viradas” teóricas. Em1920, por exemplo, diante das convulsões políticas e sociais que ocorriam na época, Freud introduziu o conceito de pulsão de morte, que trouxe uma concepção revolucionária do aparelho psíquico e, por consequência, novas modalidades de escuta na clínica. André Green é também um autor atento à adequação de outros enquadres em análise de pacientes que apresentam novas formas de ser e de sofrer. Roussillon, no mesmo trilhamento, propõe uma metapsicologia da presença e da intersubtividade, diante da dificuldade de simbolização que diz respeito à partes da história que foram recalcadas, caladas pelas intensidades dos estímulos. Partes que ficam no âmbito do não dito, no silêncio interno de cada um e que são expressadas no luto, na depressão e no pânico, que grassam nos dias de hoje e que podem ser “falas” de amputações, de partes fragmentadas do psiquismo diante de tantas perdas, que impedem projeções esperançosas na direção do futuro. O que fazer das mutilações experimentadas no presente? As referências de um mundo antigo desmoronaram, desabaram em pedaços e os estilhaços de uma vida regozijante, voou pelos ares. Uma desaceleração súbita e estarrecedora nos foi imputada, nossas ações bloqueadas, freadas, os sonhos se esquivaram e o que nos restou foi um rasgo doloroso no peito. O sentimento da insignificância humana diante da potência avassaladora de um vírus, provocou desvitalizações e nos colocou face a face com a incapacidade de lidar com a morte anunciada. A experiência de aniquilamento fragmentou narcisismos e egos até então relativamente estáveis. Em suma, o trauma Covid transfigurou a existência e fez com que orbitássemos em torno da tentativa de sobrevivência. Cobrimos nossos sorrisos com máscaras e deixamos à mostra nossos olhos perplexos. Jovens e idosos se igualaram diante da irreversibilidade progressiva do caos. A lógica que mantinha o sistema, decretou falência. Todos perderam suas ancoragens delirantes, garantidas por um mundo que desafiava a finitude e na contramão, veio a depressão, que passou a dar tons obscuros a um cotidiano repleto de privações, recheado de cadáveres contados diariamente, o que tornou ainda mais difícil ter que lidar com os desdobramentos da catástrofe. A violência de tais sintomas, nos fez pensar num declínio da simples neurose. A angústia, assim como a depressão, “respondem a uma desgraça”, como ressalta Daniel Delouya. Em diferentes perspectivas temporais, a primeira se remete ao futuro, enquanto a segunda ao passado. “A perda é para a depressão o que o perigo é para a angústia.” Ainda, segundo Delouya, a depressão é associada ao estado de prostração, à vontade de nada, ao evento traumático, enquanto a angústia estaria ligada a uma reação defensiva a este evento. O temor depressivo rastreia uma ameaça e dela tenta se defender. Para Freud, “a situação traumática contra a qual somos impotentes, faz convergir um perigo interior e exterior, com as solicitações pulsionais” (1926). Um trabalho psíquico intenso tenta barrar o que fica à espreita e o espectro do enlouquecimento se revela, através do exagero de rituais obsessivos.
A clínica foi invadida por esse panorama pandêmico e portanto, conceitos tiveram que ser revistos, incluindo aqui a queda de um setting formal, que foi substituído por uma tela, o que retirou de cena a presença concreta do analista, num momento em que a implicação total do corpo dele seria vital, face aos processos dolorosos vigentes. O isolamento e a preocupação de contágio impediram essa proximidade física. Como suprir esse vazio de presença?
Nós, analistas, não podemos ser evasivos diante do trágico, pois a dureza do momento suscita desesperos. Há pedidos de socorro em curso que demandam tato, delicadeza e sustentação na escuta, pois quem fala, traz no corpo a marca de acontecimentos pesadíssimos. E o corpo do analista, seguindo Ferenczi, mais atual do que nunca, tem que “sentir com”. Há uma urgência na substituição de modelos normativos por modelos humanistas, pois há que se experimentar, na empatia, a brutalidade do aqui e agora, veloz e mortal, ceifando famílias inteiras. O luto diz respeito à perda de seres amados, confinados na memória de quem os perdeu. Com eles vai-se a força do desejo, o corpo vivo do outro, fonte de projeções imaginárias. Nasio assinala que “o luto que dói não é da ausência do outro, mas sim dos efeitos da privação abrupta de uma presença”. O que fazer dessas fraturas psíquicas, desses traumas? Como trazer eros à cena, onde há um reconhecimento agudo da perda, onde a clivagem recolheu a libido, onde o medo fez morada e tudo é desacontecimento? Só consigo ver o lugar do analista em situação de caráter experimental, pois ao se deixar penetrar por uma outra realidade espaço temporal, na contratransferência, ele tem a possibilidade de se duplicar numa lógica outra, que leve em consideração regimes econômicos cuja matéria-prima é o sensível. Nesse tipo de construção ele pode ir além do recalcado, num lugar de pura afetação. Como dizia Fernando Pessoa, “sentir tudo de todas as maneiras”, fazendo nascer ali, naquele âmbito, um devir-outro. Muitas vezes, as sensações exprimem a vida bem melhor do que as palavras. Essa receptividade dos sentidos implica, obviamente, em se deixar atravessar por emoções anteriormente represadas, em nome de um arcabouço teórico, que num momento transbordante de tragédias, não só perde o sentido, como impede essa transformação radical da sensibilidade do analista. O fato de querer se manter isento em sua desafetação, também tem a ver com o medo da perda dos conceitos precisos de um setting formal. É um salto no abismo, que traz à tona uma outra estética que pode suscitar perguntas como” quem sou eu por trás dessa irrealidade?
Essa pluralidade indefinida, desligada de tudo que era antes, pode ser confusa, mas também fértil, pois perdem-se álibis e garantias, como dizia Derrida, mas ganha-se um fluxo incessante que transmuta e dissolve barreiras estagnantes, resistentes, que produziam imobilidade e ausência de vida.
No meu vocabulário e no meu peito condoído por ouvir tantas dores, imagino que dessa revolução sensorial só podem surgir afetos como paciência, compaixão, entrega e disponibilidade. O resto, só o tempo e o amor transferencial para tentar cerzir e remendar pedaços de vida espalhados mundo à fora. Não temos bula nem bússola. Como guia, a ética e um desejo que insiste, amparado por uma teoria cuja leitura traz em seu bojo os eternos impasses civilizatórios, sendo os conflitos psíquicos paradigmáticos em Freud. A experiência psicanalítica está permanentemente atenta a esse jogo de forças que nos habitam, que dialetizam a história subjetiva com a impossibilidade de solucionar uma trama impiedosa, o que nos remete à dimensão econômica de cada psiquismo. É função do analista, junto com o analisando, constituir destinos possíveis para essas forças, sendo importante destacar que existem afetos que não se ligam e nesse sentido a psicanálise é a-social. Ela faz laços pulsionais e não sociais, ao desbravar territórios internos afetados pelos externos. Portanto, diante da grande quantidade de eventos não metabolizáveis nos dias de hoje, é primordial trabalhar a capacidade de ligação do aparelho psíquico, na tentativa de dominação do fluxo de tantas energias negativas, que permitam ao sujeito em análise, um encontro com sua alteridade, a fim de criar outras modalidades de vida, outros propósitos existenciais que lhe deem sustentação emocional e motivacional, para atravessar a imponderabilidade que o surto pandêmico trouxe. A catástrofe política somada à depressão e ao medo da morte, demandam um esforço, um tipo de resignação em ser um outro, num mundo que sinaliza, diariamente, para o pior. E isso é duro. Trabalhar o sintoma, segundo Freud, é fundamental, mas não suficiente numa situação terrível como a que vivemos. É preciso ir além. Pois é a partir da experiência íntima vivida e não da interpretação, que uma outra estética existencial pode trazer potência e sublimação, nesse cenário feito de tanta impotência.
Entre o espaço público e o privado, a psicanálise precisa, mais do que nunca, criar um lugar sensível que traga conforto e que fortaleça o inexorável desejo de viver, num tempo tão voltado para o morrer. Que na luta contra a duração trágica, ela consiga preservar a possibilidade de sonhar.