quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

ÍTACA

Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Posidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito. tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

Constantino Kabvafis (1863-1933)
in: O Quarteto de Alexandria - trad. José Paulo Paz
POSTADO POR SABIRA ALENCAR

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Da turba à toga

Repetindo a rotina matinal, abro o jornal e leio as manchetes do dia. Não sem uma má vontade confessa. Salvo exceções, esse ritual tem tornado o meu café da manhã cada vez mais amargo. A lama que transborda das páginas contamina o sabor da refeição. Mais eis que hoje, exulto: a corregedora do Conselho Nacional de Justiça, Eliana Calmon, saiu vitoriosa após  batalha travada  durante três meses, por conta da tentativa do STF de cassar os direitos atribuídos ao CNJ de investigar os desvios de conduta dos magistrados. Não só essa mulher que muito nos orgulha vence o corporativismo que se alastrou na in-justiça brasileira, mas, acima de tudo, vencemos nós, a opinião pública que, finalmente, fez valer sua indignação.

Todos os  atentados  à nossa dignidade e inteligência vêm de longa data. Há poucos meses atrás, o ministro Luis Fux, do STF declarou um voto que ia contra o clamor popular pela aplicação da Lei, em “respeito à Constituição”.Perfeito. Mas como fica o respeito ao cidadão que paga suas contas em dia? Não se esqueçam que alguns nazistas ao serem julgados em Nuremberg, quando perguntados porque  fizeram tudo aquilo, responderam, através de um imperativo categórico que excluía toda e qualquer reflexão, que apenas cumpriam o seu dever.

A mesma indignação nos assaltou tempos atrás quando um outro ministro, desse mesmo tribunal, respondendo às criticas relativas à sua decisão de liberar os bicheiros investigados numa Operação da Polícia Federal, disse que “pouco se importava com o barulho da turba, de acordo com seu convencimento.” Nada tão surpreendente, que soe tão estranho assim, na medida em  que esse tipo de desprezo que ele expressou pela opinião pública, tem sido a tônica das decisões de, no mínimo, seis representantes  do STF. Lembro-me que a palavra “turba”, na ocasião, me capturou. Fui ao Wikipédia e confirmei minhas suspeitas: turba, entre outras coisas, é uma “multidão desordenada.”

Não há café que desça. Além de ter que engolir as decisões absurdas e descontextualizadas dos Senhores da Lei, que são incapazes de, no seus julgamentos, levar em consideração os apelos da população por uma aplicação mais rigorosa da legislação, temos que ser incluídos entre os “desordenados”.

Ora, senhores, isso é  abusar demais de nossa paciência. Afinal, em termos de “desordenação” seus companheiros da Justiça e do Congresso estão imbatíveis. Por mais que nos esforcemos, jamais chegaremos perto do desempenho e da união que eles têm demonstrado para ser uma turba. Diante de todos os fatos políticos vergonhosos que tem acontecido nesse país, estamos muito mais para ovelhas que vão passivamente para o matadouro do que para turba.

Em dezembro de 2004, numa entrevista ao O Globo, Giorgio Agambem, ao falar de suspensão da lei, disse que estamos vivendo hoje, a falência de todo e qualquer estatuto jurídico. Segundo ele, as políticas contemporâneas  acabaram com o que chamamos de um “corpo político.”

Freud, em “O Futuro de uma Ilusão”,  dizia que “as massas podem ser induzidas ao trabalho e a suportar as renúncias que a existência impõe, se forem influenciadas por indivíduos que possam fornecer um exemplo e a quem reconheçam como líderes. Tudo correrá bem se esses líderes forem pessoas com uma compreensão interna (insight) superior das necessidades da vida e que se tenham erguido à altura de dominar seus próprios desejos instituais”.

Tanto Agambem quanto Freud   falavam  da passividade das massas.

Será que Vossas Excelências  leram Hannah Arendt ?

Também em sua obra poderiam encontrar a possibilidade de uma série de reflexões sobre suas decisões. Em “Responsabilidade e Julgamento”, por exemplo, os senhores poderiam se deparar com a seguinte questão : “O que acontece à faculdade humana de julgamento quando confrontada com ocorrências que significam o colapso de todos os padrões costumeiros e, assim, não possuem precedentes, no sentido em que não são previstas nas regras gerais, nem mesmo como exceções a essas regras?”

Enfim, senhores  ministros não vou me estender, pois o espaço é pequeno.

O que quero lhes dizer, fundamentalmente, em meu nome próprio e de todas as pessoas dignas e decentes desse país, é que hoje a turba lavou a alma e que ao julgarem, tomem cuidado com o seu “convencimento”. O CNJ está aí....

Jazz

Não guardo de você, nenhuma lembrança que mereça poema.

       Não lembro de beijo estonteante, nem de contato viscoso,

                                                        melado.

       Mas lembro de um trompete: Miles Davis.

       A música, teu único presente, guardo: Barrosinho.

       Nada mais, nem sorriso, nem doçura.

       Nunca mais dividir prato de comida, nem conta, nem cômodo.

       Mas lembro da música apresentada ao ouvido: Wayne Shorter.

       Daquele som de Lee Morgan perfurando o coração distraído,

       Emprenhando definitivamente o corpo meu.

                                    Edna M. Médici
                     

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Minimalismo

       Basta um quarto cheio de música.
       Basta o cheiro de velas e incenso de rosas,
                                        o álcool,
                                        o torpor,
                                a abstinência sexual,
                                a solidão desértica.
       Basta meia respiração, só um pouquinho de ar
       Pra levar um sentimento capenga do coração até o cérebro.
       Tenho o mínimo.
       Quero o mínimo.
       É preciso não destinguir entre dia e noite.
       É mister não dizer palavra,
             não caminhar,
             nem olhar pelas gretas da janela o acontecimento das ruas.
       Basta um cigarro,
             um pedaço de chocolate
             e um canto pra desmontar o corpo
       Conheço o mínimo,
       Prefiro o mínimo
       Sem compromisso, nem conforto, nem afetos, nem expectativas.
       A salvo, completamente a salvo!

                                 Edna M. Médici

As mulheres e o poder

 COMO ENCADERNAÇÃO VISTOSA, FEITA PARA ILETRADOS A MULHER SE ENFEITA, MAS ELA É UM LIVRO MÍSTICO QUE SOMENTE  A ALGUNS, A QUE TAL GRAÇA SE CONCEDA, É DADO LÊ-LA”                                                                                                                                 (Péricles)


Entrou em cartaz essa semana um filme do judeu romeno Radu Mihaeileanu, “ A fonte das mulheres”, que tem como inspiração a peça “Lisístrata”, de Aristófanes, onde mulheres exercem seu poder através de uma greve de sexo, o que faz com que os maridos se submetam aos seus desejos. Pegando carona no humor grego, Radu cria uma fábula ambientada na Turquia contemporânea, sobre a dimensão política das mulheres, ou como ele mesmo diz, uma alegoria sobre a recente ascensão feminina à liderança governamental em diversos países, como o Brasil, onde a força do voto feminino na última eleição teve uma representação de cerca de  30,3 % do eleitorado.  Entretanto, o que pode ser interpretado como uma grande vitória, após o longo processo feminista de dissolução de hierarquias que caracterizou a construção das sociedades, paradoxalmente, imaginamos que também pode haver um retrocesso desastroso se não refletirmos, de antemão, sobre as condições e possibilidades do que representa esse momento histórico, já que poderemos ser condenados a abrir mão de transformações e práticas políticas significativas, advindas de tantas lutas que tiveram como efeito vários deslocamentos de posições. Pois a política, que sempre teve seus conflitos e antagonismos performatizados por sujeitos com classe, raça, sexualidade e gênero diferenciados, na verdade, paralelamente, foi regida em sua maior parte por um único signo, o da masculinidade. Agora, uma rara oportunidade surge, não no que diz respeito especificamente ao gênero, um homem ou uma mulher, mas sim no que se refere à criação de uma outra mentalidade.  E o que se quer dizer com isso?  É claro que não há, aqui, a possibilidade de uma análise histórica profunda de como foram demarcadas outras territorialidades, assim como é evidente que, para que isso acontecesse, ocorreram radicalizações, exageros e equívocos, partes inevitáveis das tentativas de superação de um lugar de menos-valia e de inferioridade, que nunca deixaram de fazer parte da longa jornada  feminista.  Na ânsia de igualdade de direitos, muitas mulheres se perderam de sua feminilidade e da sua real potência, na medida em que estabeleceram semelhanças com o discurso masculino em relação ao poder, tornando-se extremamente fálicas.  Se por vários aspectos tivemos evoluções, por outros temos sido espectadores de degradações. Ao invés de virarem sujeitos de seu próprio discurso, certas mulheres caíram no engodo de permanecerem, apenas, nos velhos lugares de objetos de consumo. Silicones e peitos turbinados viraram sinônimos de “segurança”, o que diga -se de passagem, não só empobreceu as relações afetivas, como, também, produziu essa distorção entre poder e potência, o que acabou causando um distanciamento incomensurável,  um abismo, entre mulheres e homens. Nessas tentativas, elas se perderam de características fundamentais que deixaram um vazio, não somente em suas identidades, assim como em suas trocas afetivas, sócio- políticas  e existenciais. Sem falar no desejo impossível de igualdade, já que este seria uma injustiça para com os diferentes. Isso fez com que  ganhos relativos à equivalência realmente se concretizassem.

Essa a questão que está posta em jogo. A velha pergunta que Freud não conseguiu responder _ “ Afinal, o que quer uma mulher?_ pode ser aqui atualizada: Afinal,o que querem  com o poder?” Repetirão o mesmo ou vem para assumir a diferença?  Conseguirão escapar das artimanhas e seduções tão fortemente demarcadas pelas características masculinas nos lugares de poder?  A presença feminina na Presidência, por exemplo, trará um  outro olhar sobre a nossa realidade sócio-política? Que ética prevalecerá?  Continuaremos apenas a ver a prevalência do capital sobre os valores?

Assim sendo, parece decisivo questionarmos esse momento,   face à tarefa tão significativa de democratização radical que ele representa. Derrida dizia que a grande vitória política será quando houver uma desconstrução dos registros vigentes. E isso não diz respeito somente ao gênero, masculino e feminino, mas sim a uma mudança de parâmetros, uma verdadeira revolução do pensamento na construção de outra ordem de conhecimento. Ao invés de uma posição confrontativa, competitiva, a negociação de território, a flexibilidade, a delicadeza, uma diferença sutil que estabeleça um novo interesse para o mercado, através da percepção e da sensibilidade. Essa a questão relativa à feminilidade.  Um outro tipo de força como instrumento de poder,   uma outra estética,um “ exercício da potência”,  radicalmente oposto ao “exercício de poder”. Potência no sentido de forças que são elementos, inclusive, de socialização. Ao invés de nomearmos essa possibilidade como um tipo de política pós feminista, o que traz a idéia de algo resolvido,  podemos caracterizar essa oportunidade como um “momento do feminismo”, como bem diz Heloísa Buarque de Hollanda.

Há poucos meses atrás, uma ousada artista franco-marroquina, Majida Khattari,questionou com muito humor a questão da burca que invade a cena cultural francesa e os clichês de um lado e  de outro. nos deixando como provocação a seguinte pergunta: que lugares são esses que podem ser  ocupados pelas mulheres nas políticas contemporâneas? Estarão elas em pleno exercício de sua liberdade e potência, ou continuarão sendo uma mera costela de Adão? Num desfile- performance , ela colocou na passarela uma mulher totalmente envolta num véu, enquanto que na contramão, caminhava uma outra modelo praticamente nua, tentando equilibrar-se num salto altíssimo. Para ela não há diferença entre uma e outra, já  que a primeira vive restrita à uma tradição, enquanto que a outra é  prisioneira do modelo ocidental de beleza. Para a esperta Majida, a questão é o meio-termo “Já estamos num país laico, proibir é um absurdo, não vai resolver o problema. Ao contrário, vai radicalizar a situação e criar um conflito maior.“ Majida parece falar desse lugar intermediário que não está pronto e que não diz respeito à disputa de poder e sim à potência da criação de novos lugares. Quem dera  que  a provocação da artista marroquina surtisse efeito nos corações, mentes e corpos de uma grande parcela de mulheres e que ela pudessem seguir à risca  a escrita de Ana Cristina Cesar:

“ O céu, quando entra em mim, o vento não faz voar,   esses papéis.”

À Espreita

Meu espaço é a noite

         de olhos barbitúricos

         de nariz escorrendo pingos de soda cáustica

         de coração bomba-relógio destemperado e arrítmico

       Minha noite é aquela que simula o dia

         de lâmpada acesa e pestana pregada em folha de livro

         de pés pra fora do lençol a espantar anjo-da-guarda

         de visões caleidoscópicas

         de ansiedade pendurada na janela

       à espreita à espreita   à espreita  à espreita

       Edna.M.Médici