segunda-feira, 28 de março de 2022

Relatos selvagens

Catástrofe, Trauma e Medo

A cabeça fervilha, o corpo dói, a mão treme hesitante.
Escrevo ou não? Lembro de Marguerite Duras e sua dor: “Como pude escrever isto, que não sei nomear e que me assombra quando releio?”
Como adentrar a complexidade dos fundamentais problemas que ora nos atingem? Temo minhas fragilidades diante do caos. Desse trinômio de múltiplas determinações, ou seja, trauma, catástrofe e medo, que faz emergir afetos tão profundos, vitais e culturais, o que brotará? Preciso me distanciar afetivamente para ter uma visão mais ampla dos fatos ou me aproximo dos meus ódios, da minha ira, do que é substancioso em mim para chegar as vias dos fatos? Quem sabe onde chegarão esses descaminhos? Meu estado de espírito não faz promessas harmoniosas. E depois? Não poderei voltar atrás. O dito pode estar condenado à esterilidade. Ou, quem sabe, ao alvo certeiro. Mas essa dúvida faz parte do risco, do desafio de quebrar o entorpecimento que me assombra, o que acaba por fortalecer e validar minha ousadia. de perguntar: afinal, que mundo é esse feito de epidemia e guerra? 
O momento estranho que vivemos, trouxe um estilo muito pouco familiar, onde “o humano, demasiadamente humano” só traz equívocos e contradições dolorosas. Como deter  esse tempo de onde escorrem gritos e sussurros de dor? O horizonte de brutalizações não vai parar.  Os argumentos estão sendo substituídos por jogos de força violentos. A máquina digital, as armas e o capital se uniram numa estranha aliança que pode aniquilar nossa liberdade e nos tornar mortos-vivos. É preciso ampliar e dilatar as fronteiras nessa ausência de horizontes, para que escoem nossas energias vitais, caso contrário teremos derrames escarlates invadindo os órgãos que garantem nossa vitalidade. A escrita é uma saída, por ser um reflexo da vida e a indignação uma energia transbordante, um rio que corre pelas veias abertas, como diz Galeano.
Então é isso. Preciso gastar os excessos. Escrever.
Um petardo atingiu a humanidade. Assim, de súbito. Do nada, não. Do tudo, sim. Da audácia e do destemor dos inescrupulosos até nossa impávida inércia e apatia, fomos tomados de assalto por um terror inominável, trazido por uma substância obscura, que, obstinadamente, trouxe desrealizações múltiplas, irrespiráveis e abruptamente mortais. Viramos massa de manobra de seres indizíveis. Como lidar com o que se desconhece e que é extra-humano, que descentraliza, tira todos os eixos, arranca as vestes certeiras da ciência, desnudando a ignorância que nos reveste, nos apavorando num cara a cara com a morte? De repente, viramos escárnio para ela. Nós que tudo sabíamos, ficamos socráticos. Só sabemos que nada sabemos. De nada adiantaria nos colocarmos acima da realidade solapadora de vidas. Viramos protagonistas de destinos nada poéticos. Assim, não mais que de repente, fomos igualados em raça, cor, sexo, gênero e status. Tudo condensou-se num sistema agudo e incrivelmente veloz, onde a última coisa que pode ser negada é a realidade. Só um louco o faria. E o faz. O homem comum se sente aterrado perante algo que não entende. Como bem descreve Ortega e Gasset, ao penetrar numa catedral gótica, que o fez descobrir que “ é realista demais, pois quando se olha para cima, a terra se escapa, como só ocorre quando a água do mar leva a areia que está debaixo dos nossos pés.. Eu não sabia que dentro de uma catedral gótica habita sempre um torvelinho, isto é, que apenas pus os pés no interior, fui arrebatado do meu próprio peso sobre a terra.” 
Essa analogia ilustra, metaforicamente, o quão arrasante e destruidora pode ser a experiência humana face à constatação de um mundo real. Estamos vivendo uma mudança civilizatória, com desdobramentos erráticos que nos conduziram a uma fragmentação identitária. Perdemos tempo nos preocupando com coisas futuras, sem conseguir digerir as presentes. Há um desgaste psíquico absurdo, quando tentamos dar conta do excesso que perdas sucessivas nos causam e uma impossibilidade de lidar com tantos lutos. Angústia, depressão, desespero, pânico, melancolia, obsessão compulsiva têm sido o retrato de parte das sintomatologias que se apresentam na clínica contemporânea, sendo o medo o cerne de todas essas inquietações. É como se a aterradora experiência de insegurança face à morte, tivesse rompido, abruptamente, a promessa de finitude que a modernidade, com escudos protetores tecnológicos, jurou materializar. A frustração das esperanças, trouxe a impotência e a insegurança como insultos, segundo Bauman. A incalculabilidade das catástrofes vindas da natureza e dos jogos de poder, fizeram com que a humanidade desse de cara com seus desatinos pois, aleatoriamente, a lei do retorno se fez presente. Os males produzidos pelo homem insensível e onipotente, apresentaram uma conta cruel e impagável. A sobrevivência e o sentimento de preservação de si, limitaram-se, então, à uma repetição maníaca para manter-se vivo, protegido em uma existência dissociada do vínculo social ordinário, em detrimento da identidade íntima, numa tentativa de controle extremo do vazio experimentado que, inevitavelmente, o conduziu à perda substancial do mundo real, no qual deixou de investir. Sua pele se tornou uma fronteira rígida e perigosa, para garantir que não seria afetado pela adversidades, mas tudo isso acabou por despertar sentimentos ambíguos, que desembocaram no que diz respeito à pandemia, em intensa culpabilidade referente ao contágio. Se me misturo, mato ou morro. Se me isolo, sofro. Não é só a catástrofe que nos assombra, mas também a impossibilidade de mudar as coisas e isso produz uma espécie de expropriação de si mesmo, uma perda da antiga existência. O outro próximo virou uma ameaça mortal. Quais os desdobramentos desses registros?
A pandemia colocou o mundo inteiro num regime de exclusão e de duração, num tempo em câmara lenta, num congelamento tenso e doloroso, repleto de movimentos ordinários, que aos poucos, foram se tornando característicos da vida cotidiana, levando à fadiga e ao cansaço da rotina. Não há nuances de tempos felizes, nem de esperanças a curto prazo.  Essa espécie de temporalidade tirou o brilho dos acontecimentos, pela sensação de se estar acorrentado a um si mesmo, que deprime, traumatiza e traz a sensação de esmagamento da existência. Apesar das redes amenizarem o isolamento exigido pelo surto pandêmico, a perda da comunicação intersubjetiva contribuiu para um aumento dos estados depressivos e de uma desapropriação daquilo que sempre foi familiar e humano. Um tempo de aniquilamento psíquico e de corpos afetados por vazios intensos. Essa queda na depressão, que não se confunde com tristeza e o fato de permanecer fechado nela, leva à horrível sensação do ser completamente sozinho, a uma falta de pertencimento, sendo este um desejo inerente ao humano. Uma pessoa se torna o que é por meio daquilo que ela experimentou ao longo da vida, da concentração dos fatos vividos. Pois, para além da herança genética que trazemos ao nascer e aos acontecimentos subsequentes ao longo dos anos, somos frutos dos sistemas sociais e políticos nos quais estamos inseridos. Mas de que forma os fatos vinham sendo consumidos ou vividos antes da pandemia? Que mundo estava em curso? Que discursos predominavam na clínica? É historicamente visível, que fomos, paulatinamente, sendo parte de uma massa de excitações, um híbrido de sensações, como bem diz Christoph Turcke, que não têm como ser digerido em sua essência. Um excesso nos tomou. O mundo tecnológico acentuou a tirania do tempo, a velocidade virou fonte essencial aqui e alhures e em todas as frentes, tornou-se exigência de vida. Ao acontecer isso, ou seja, quando a intensificação do tempo devora o próprio tempo, os ritmos se alteram e o psiquismo só absorve parte de um volume cumulativo, gerador de angústia. O que fica fora do campo de absorção se faz trauma, porque não foi metabolizado. O celular, símbolo maior desse universo, potencializou obsessões, instrumentalizou seres, colonizou o cotidiano, não poupando vida pessoal, sequer a familiar. A sobrecarga virou angústia, moeda a ser paga por conta das “vantagens” trazidas pela comunicação imediata. Quem foi capaz de responder eficientemente, na hora exata, às demandas de produção, foi bem avaliado pela lógica do sistema. Foi visto como guerreiro. Só que esse fluxo intenso criou “indivíduos em permanente excesso”, segundo R. Castel, que vivem no exagero, na competitividade e que pouco a pouco, de guerreiros passaram à escravos de psicotrópicos reguladores, que os deixavam sempre em condições energéticas plenas para o desempenho. Salvo raras exceções, esse tipo de individuo fabricado por um sistema infernal, foi ganhando solidão e comumente, depressão. Sem contar o uso excessivo de álcool, com danos secundários que o anestesiavam, ajudando-o a ir se libertando do seu centro de exigências, que o tornavam um estrangeiro para si mesmo. Evidentemente, tal apaziguamento é sempre provisório, porque ninguém consegue viver fora de si próprio por muito tempo. David Le Breton, diz que “desaparecer de si é uma tentação contemporânea”. Penso, por outro lado, que o trauma é o vilão que produz a dor insistente que leva a essas permanentes tentativas de fuga. O mundo e o humano entraram em descompasso e de repente, no meio desse caos, chegou a catástrofe. Com o surgimento da Covid, essas estratégias e considerações se tornaram absolutamente ineficazes, fadadas ao fracasso, já que não há como fugir de um grande e devastador acontecimento, como o que pegou o mundo desavisado. Ninguém poderia imaginar o radicalismo da experiência que iríamos viver. Por mais que o cinema nos mostrasse ficções terríveis, jamais nosso imaginário as viu como algo que fosse ser o real que iria se nos apresentar. Pensávamos como deveria ser monstruoso passar por cenas que as telas exibiam. Fechávamos os olhos para não ver os horrores trazidos pelo Mal. Agora, diariamente, somos lembrados não mais que a morte e o Mal existem, mas que podem estar ao nosso lado, no copo que usamos, no abraço amigo, no botequim que frequentamos, nas cadeiras do cinema onde éramos platéia, na areia da praia, no salão onde nos embelezávamos, no consultório de nossos médicos de confiança, nos teatros, etc... Apavorantemente, fomos sendo surpreendidos com a palavra contágio e sendo esclarecidos que, em todo e qualquer lugar que encostássemos nossos supostos invioláveis corpos, conheceríamos de perto a mistura entre trauma e terror.
O corpo humano e o psiquismo não foram preparados para dar conta de tanta carga e justamente essas sobras não introjetadas (Ferenczi) é que foram se constituindo como excessos traumáticos. Na verdade, não só individualmente. Hoje nos transformamos num “coletivo pandêmico traumatizado”, que se arrasta, desesperadamente, à espera de um alento que aponte saídas para um pesadelo jamais pensado: além de uma pandemis, a guerra. Não temos como mensurar agora, nesses tempos diabolicamente cruéis, quantas pessoas traumatizadas se apresentam na clínica. O caos ganhou uma dimensão gigantesca, porque vem associado a um outro excesso: o medo. Que por sua vez, é revestido de uma angústia inenarrável, de difícil dissolução. A palavra, mais do que nunca, se fez precária e a escuta acolhedora, que legitima todos esses afetos, se fez necessária de forma contundente.
Uma questão de fundamental importância para a clínica psicanalítica, sublinhada por Freud, diz respeito aos limites e possibilidades da teoria diante de provações como essas que ora vivemos e à necessidade de novas construções a partir de um conjunto de indicações fornecidas pelos processos viscerais que atravessam a humanidade. Em vários períodos críticos da história, aconteceram “viradas” teóricas. Em1920, por exemplo, diante das convulsões políticas e sociais que ocorriam na época, Freud introduziu o conceito de pulsão de morte, que trouxe uma concepção revolucionária do aparelho psíquico e, por consequência, novas modalidades de escuta na clínica. André Green é também um autor atento à adequação de outros enquadres em análise de pacientes que apresentam novas formas de ser e de sofrer. Roussillon, no mesmo trilhamento, propõe uma metapsicologia da presença e da intersubtividade, diante da dificuldade de simbolização que diz respeito à partes da história que foram recalcadas, caladas pelas intensidades dos estímulos. Partes que ficam no âmbito do não dito, no silêncio interno de cada um e que são expressadas no luto, na depressão e no pânico, que grassam nos dias de hoje e que podem ser “falas” de amputações, de partes fragmentadas do psiquismo diante de tantas perdas, que impedem projeções esperançosas na direção do futuro. O que fazer das mutilações experimentadas no presente? As referências de um mundo antigo desmoronaram, desabaram em pedaços e os estilhaços de uma vida regozijante, voou pelos ares. Uma desaceleração súbita e estarrecedora nos foi imputada, nossas ações bloqueadas, freadas, os sonhos se esquivaram e o que nos restou foi um rasgo doloroso no peito. O sentimento da insignificância humana diante da potência avassaladora de um vírus, provocou desvitalizações e nos colocou face a face com a incapacidade de lidar com a morte anunciada. A experiência de aniquilamento fragmentou narcisismos e egos até então relativamente estáveis. Em suma, o trauma Covid transfigurou a existência e fez com que orbitássemos em torno da tentativa de sobrevivência. Cobrimos nossos sorrisos com máscaras e deixamos à mostra nossos olhos perplexos. Jovens e idosos se igualaram diante da irreversibilidade progressiva do caos. A lógica que mantinha o sistema, decretou falência. Todos perderam suas ancoragens delirantes, garantidas por um mundo que desafiava a finitude e na contramão, veio a depressão, que passou a dar tons obscuros a um cotidiano repleto de privações, recheado de cadáveres contados diariamente, o que tornou ainda mais difícil ter que lidar com os desdobramentos da catástrofe. A violência de tais sintomas, nos fez pensar num declínio da simples neurose. A angústia, assim como a depressão, “respondem a uma desgraça”, como ressalta Daniel Delouya. Em diferentes perspectivas temporais, a primeira se remete ao futuro, enquanto a segunda ao passado. “A perda é para a depressão o que o perigo é para a angústia.” Ainda, segundo Delouya, a depressão é associada ao estado de prostração, à vontade de nada, ao evento traumático, enquanto a angústia estaria ligada a uma reação defensiva a este evento. O temor depressivo rastreia uma ameaça e dela tenta se defender. Para Freud, “a situação traumática contra a qual somos impotentes, faz convergir um perigo interior e exterior, com as solicitações pulsionais” (1926). Um trabalho psíquico intenso tenta barrar o que fica à espreita e o espectro do enlouquecimento se revela, através do exagero de rituais obsessivos.
A clínica foi invadida por esse panorama pandêmico e portanto, conceitos tiveram que ser revistos, incluindo aqui a queda de um setting formal, que foi substituído por uma tela, o que retirou de cena a presença concreta do analista, num momento em que a implicação total do corpo dele seria vital, face aos processos dolorosos vigentes. O isolamento e a preocupação de contágio impediram essa proximidade física. Como suprir esse vazio de presença?
Nós, analistas, não podemos ser evasivos diante do trágico, pois a dureza do momento suscita desesperos. Há pedidos de socorro em curso que demandam tato, delicadeza e sustentação na escuta, pois quem fala, traz no corpo a marca de acontecimentos pesadíssimos. E o corpo do analista, seguindo Ferenczi, mais atual do que nunca, tem que “sentir com”. Há uma urgência na substituição de modelos normativos por modelos humanistas, pois há que se experimentar, na empatia, a brutalidade do aqui e agora, veloz e mortal, ceifando famílias inteiras. O luto diz respeito à perda de seres amados, confinados na memória de quem os perdeu. Com eles vai-se a força do desejo, o corpo vivo do outro, fonte de projeções imaginárias. Nasio assinala que “o luto que dói não é da ausência do outro, mas sim dos efeitos da privação abrupta de uma presença”. O que fazer dessas fraturas psíquicas, desses traumas? Como trazer eros à cena, onde há um reconhecimento agudo da perda, onde a clivagem recolheu a libido, onde o medo fez morada e tudo é desacontecimento? Só consigo ver o lugar do analista em situação de caráter experimental, pois ao se deixar penetrar por uma outra realidade espaço temporal, na contratransferência, ele tem a possibilidade de se duplicar numa lógica outra, que leve em consideração regimes econômicos cuja matéria-prima é o sensível. Nesse tipo de construção ele pode ir além do recalcado, num lugar de pura afetação. Como dizia Fernando Pessoa, “sentir tudo de todas as maneiras”, fazendo nascer ali, naquele âmbito, um devir-outro. Muitas vezes, as sensações exprimem a vida bem melhor do que as palavras. Essa receptividade dos sentidos implica, obviamente, em se deixar atravessar por emoções anteriormente represadas, em nome de um arcabouço teórico, que num momento transbordante de tragédias, não só perde o sentido, como impede essa transformação radical da sensibilidade do analista. O fato de querer se manter isento em sua desafetação, também tem a ver com o medo da perda dos conceitos precisos de um setting formal. É um salto no abismo, que traz à tona uma outra estética que pode suscitar perguntas como” quem sou eu por trás dessa irrealidade?
Essa pluralidade indefinida, desligada de tudo que era antes, pode ser confusa, mas também fértil, pois perdem-se álibis e garantias, como dizia Derrida, mas ganha-se um fluxo incessante que transmuta e dissolve barreiras estagnantes, resistentes, que produziam imobilidade e ausência de vida.
No meu vocabulário e no meu peito condoído por ouvir tantas dores, imagino que dessa revolução sensorial só podem surgir afetos como paciência, compaixão, entrega e disponibilidade. O resto, só o tempo e o amor transferencial para tentar cerzir e remendar pedaços de vida espalhados mundo à fora. Não temos bula nem bússola. Como guia, a ética e um desejo que insiste, amparado por uma teoria cuja leitura traz em seu bojo os eternos impasses civilizatórios, sendo os conflitos psíquicos paradigmáticos em Freud. A experiência psicanalítica está permanentemente atenta a esse jogo de forças que nos habitam, que dialetizam a história subjetiva com a impossibilidade de solucionar uma trama impiedosa, o que nos remete à dimensão econômica de cada psiquismo. É função do analista, junto com o analisando, constituir destinos possíveis para essas forças, sendo importante destacar que existem afetos que não se ligam e nesse sentido a psicanálise é a-social. Ela faz laços pulsionais e não sociais, ao desbravar territórios internos afetados pelos externos. Portanto, diante da grande quantidade de eventos não metabolizáveis nos dias de hoje, é primordial trabalhar a capacidade de ligação do aparelho psíquico, na tentativa de dominação do fluxo de tantas energias negativas, que permitam ao sujeito em análise, um encontro com sua alteridade, a fim de criar outras modalidades de vida, outros propósitos existenciais que lhe deem sustentação emocional e motivacional, para atravessar a imponderabilidade que o surto pandêmico trouxe. A catástrofe política somada à depressão e ao medo da morte, demandam um esforço, um tipo de resignação em ser um outro, num mundo que sinaliza, diariamente, para o pior. E isso é duro. Trabalhar o sintoma, segundo Freud, é fundamental, mas não suficiente numa situação terrível como a que vivemos. É preciso ir além. Pois é a partir da experiência íntima vivida e não da interpretação, que uma outra estética existencial pode trazer potência e sublimação, nesse cenário feito de tanta impotência.
Entre o espaço público e o privado, a psicanálise precisa, mais do que nunca, criar um lugar sensível que traga conforto e que fortaleça o inexorável desejo de viver, num tempo tão voltado para o morrer. Que na luta contra a duração trágica, ela consiga preservar a possibilidade de sonhar.


segunda-feira, 2 de julho de 2018

O DUPLO , UMA INTERPRETAÇÃO


                            
A questão do duplo, por ser fascinante, é intensamente explorada na literatura e na psicanálise. De Shakespeare à Dostoievsky, passando obviamente por Freud, a atração que esse fenômeno exerce fez com que grandes obras fossem escritas.  Dostoievski, por exemplo, em “O Duplo”, criou um protagonista, Golyádkin, um funcionário público de baixo escalão, que afetado por um transtorno psicológico fixa-se num duplo de si, um outro Golyádkin , que vem transtornar sua vida e seu trabalho. Dostoievski constrói uma narrativa genial que vai misturando real e alucinação, até o ponto em que as flutuações da consciência e da demência do personagem sucumbem à objetividade do real. De acordo com estudiosos, no que diz respeito aos mitos literários, desde a Antiguidade os duplos eram representados por pares idênticos ou sósias. Só a partir do século XVI o duplo passou, também, a representar o heterogêneo, ligado à questões relacionadas à subjetividade. Nesse tipo de duplo, o que se tem é a alma humana buscando-se a si mesma, já que acontece uma divisão do eu, resultado de uma quebra de unidade. Shakespeare, em sua obra, utiliza também o mesmo recurso para desmascarar as contradições do discurso soberano, quebrando, astuciosamente, as convenções dramáticas com o duplo disfarce sendo usado como uma estratégia subversiva para problematizar as noções de género e de poder.  Já Freud foi muito mais longe. Seu texto sobre a inquietante estranheza, problematiza o Unheimlich, onde ele afirma a presença de um outro, estrangeiro e ao mesmo tempo familiar, que nos habita. Em 1915, o artigo “O Inconsciente” foi o ponto culminante de sua obra e representou o esforço mais radical operado por ele, ao forjar uma representação coerente dos conteúdos e do modo de funcionamento do aparelho psíquico. Habitado sobretudo por traços mnésicos, fragmentos desses traços e imagens muitas vezes aleatórias, tal combinação tende a formar uma cena, o fantasma inconsciente. Toda essa trama complicada se torna mais densa quando a ela se soma o trauma, um excesso que causa excitações provindas de fora, que são suficientemente poderosas e que rompem uma barreira de proteção, um escudo de uma área limitada. E aí, o que acontece? Um fenômeno bem conhecido, avisa Freud: a dor. E como ele já havia explicitado em 1911, em “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”, sabemos que no final das contas, o princípio de realidade trabalha em função do princípio de prazer e não contra ele. Essa conclusão tem papel crucial na tentativa de elucidação da compulsão à repetição. Ou seja, porque precisamos repetir o que é traumático? Bem, e porque estou tergiversando sobre o duplo e os desdobramentos dele na literatura e na psicanálise? A culpa é do filme “O Amante Duplo”. Ao sair do cinema o que mais ouvia era: “...não entendi nada, que filme maluco, o marido era o psicanalista ou era o irmão gêmeo, este existia mesmo ou era criação da cabeça dela?” Como li outro dia, a atividade poético-metafórica de um filme consiste na transformação das coisas numa visibilidade que apenas a estética pode apreender e descrever. Inicialmente, a verdade reside na base de todas as coisas.Com a sequência do filme, a complexidade evolui e no decorrer dele os diálogos tornam visíveis o que supostamente é o real das coisas em si faladas. Mas as palavras e os desdobramentos da história nos convidam a um duplo movimento. A tentativa de tradução dos fatos, pouco a pouco se confunde com uma ambiguidade sintomática, formadora do discurso da cisão. Essa ambiguidade choca os não iniciados no discurso psicanalítico e dá margem a profundos mal entendidos. O script reproduz-se de forma a confundir mesmo e nisso apresenta vantagens, devido à atividade da fantasia, que suscita a curiosidade no espectador.,
 Muito já se escreveu sobre o enquadre e a situação analítica. No filme, a recusa do analista em continuar o tratamento se dá pela ameaça ao íntimo que deve ser preservado, já que uma das condições de transferência é a abstinência, a neutralidade, que garantem a exigência técnica da superfície de projeção transferencial. A contratransferência, no caso, poderia tornar o intimo obsceno. E ele se interdita. Mas é exatamente esse obsceno que a personagem procura. Ao tornar-se marido, o analista perde essa possibilidade porque não está mais no registro da transgressão. Ele supre o que diz respeito a uma presença cuidadosa e que diminui a solidão de Chloé. Aí temos duas possibilidades no filme:  a primeira, que eu particularmente descarto por ser simplista demais, é que ele de fato tem um irmão gêmeo, que vira o duplo perverso do antigo analista, atendendo às demandas de Chloé ou então, ela cindida, criando delirantemente o analista que precisa para curar suas dores, através da duplicação /projeções especulares que faz na figura do marido. Eu optei pela segunda hipótese. Achei-a mais interessante. Através de uma certa violência e erotismo, Chloé cria um outro percurso e vai desbloqueando a sexualidade reprimida e suas intensidades à deriva. Esse duplo vêm a serviço de uma causa: integrar partes dolorosas e traumáticas que não foram introjetadas ao longo da vida dela. Integrar a gêmea que vivia dentro dela e que produz as projeções e duplicações histéricas que a atormentam. É preciso revivenciá-las num outro âmbito para, então, superar seus traumas de abandono materno e principalmente do fato de que, inconscientemente, ela nutria uma culpa profunda por ter “engolido” o feto da irmã gêmea durante uma gestação mal sucedida. Chloé, literalmente, busca a cura e o seu tornar-se mulher, talvez de uma forma desordenada, caótica para o espectador, mas ao mesmo tempo, perfeitamente factível. Como diz Clément Rosset”,a necessidade de duplicação é necessária à assunção de um real cuja unicidade crua é instintivamente pressentida como indigesta. A coisa só é tolerável se mediatizada, desdobrada. Não há nada nesse mundo que se possa experimentar assim, diretamente. O gosto pela complicação diz respeito ao horror do único”. Belo filme.
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Angela Bezerra Villela,
Em 01/07/2018


quarta-feira, 21 de junho de 2017

TRONO MANCHADO DE SANGUE

   Esse título ecoou dias a fio na minha cabeça. por conta da confluência de múltiplos elementos. A experiência estética abre nosso espírito para livres associações e minha mente foi sacudida, assim como minha escuta, quando  alguém mencionou que Akira Kurosawa havia feito uma versão de Macbeth, transpondo o universo shakespeariano da Escócia para o Japão Feudal. Desde então não mais me aquietei. Trono manchado de sangue? Como não associar ao que está acontecendo politicamente no Brasil? Afinal, cinema, psicanálise, literatura e política são motivos suficientes, para, no mínimo, produzir um texto. O caráter relacional desses itens apresentava uma grande riqueza de sentido. Uma certa fecundidade tomou conta de mim e num átimo, o escrevi. Infelizmente, ao passar a versão escrita no Word para o blog, perdi o artigo. Era apenas um textinho, mas que dor. Procurei-o desesperadamente. Tornou-se irrecuperável. Perdeu-se de mim. A sensação desagradável demandou um certo luto. Porém, a pulsão voltou a insistir, não desistiu e eis-me aqui escrevendo outro artigo. Afinal, não é tarefa da análise plasmar âmbitos? Vivendo numa época de tramas macabras e de ódios, sinto-me atraída pela idéia de que podemos extrair algo de interessante dessa conjunção, proporcionada pelo filme de Kurosawa e a obra de Shakespeare. “Trono manchado de sangue”é a tradução  em português para o que, em japonês, recebeu o titulo de " Castelo da Teia de Aranha". A história do filme gira em torno de dois guerreiros, Taketoki Washizu e Yoshiaki Miki, que se deparam na floresta com um espírito que faz previsões muito assustadoras.a respeito do futuro. Ambos não levam a sério os mal-ditos. Zombam, inclusive, deles. Inadvertidamente,Taketoki  compartilha a experiência com sua mulher, a Senhora Asaji, que se torna uma cópia de Lady Macbeth, envenenando e instigando o marido a assassinar o amigo, que supostamente iria conspirar contra a família Washizu , arruinando-a. Na ãnsia de se tornar o Senhor do Castelo de Areia e com medo de que as palavras da esposa se tornassem realidade,  ele consuma o ato e mata Miki. 
Existe algo mais atual do que as histórias que atravessam os tempos e a vida? Hamlet, Macbeth, Ricardo III ou Lear?  Estamos de volta ao século XVI, com suas tramas tecidas nas intrigas, na ambição, nos assassinatos, nas disputas de poder, nas conspirações e traições urdidas na penumbra e nos porões dos “castelos.” Quem matou Celso Daniel e supostamente, Teori Zawascky? Shakespeare é totalmente contemporâneo. E Kurosawa sabia disso. Também Freud, no desenvolvimento de suas idéias, pensou não apenas na arte em geral, mas nos sonhos como experiência que leva o sonhador a recompô-lo e a relatá-lo em discurso. Aproximamos, assim, sonhos e desejos, de um filme narrativo ou de um texto literário, na medida em que é o desejo do autor que move a obra. Tal como acontece na própria clínica psicanalítica. Merleau-Ponty, por exemplo, explora essa relação como sendo  uma espécie de "instâncias contemporâneas", que atualizam uma nova percepção do homem-em-situação, ou uma nova concepção do olhar como atividade dotada de sentido. Vários cineastas brincam com essas possibilidades, como é o caso de Buñuel, que junto com Salvador Dali, produziu cenas surrealistas em ‘O Cão Andaluz”. No filme, uma lâmina cortava um olho e essa cena foi baseada num sonho de Buñuel, em que ele dizia ter visto uma nuvem cortando a lua. 
Podemos nos interrogar, então, como suportar os pesadelos  e tormentos surrealistas de nossa época? Só através da arte, quando o sujeito se experimenta como sendo um outro, uma alteridade, que realiza uma experiência psíquica reveladora do inconsciente. Só sendo “artistas em construção permanente”, já que a dertrutividade é demasiadamente real e concreta. Freud sabia disso e também, de que a pulsão de morte não se articula no registro da linguagem, o que impõe ao sujeito a necessidade de inscrição num registro simbólico. Isso coloca a psicanálise hoje, mais do que nunca, como um instrumento precioso para se pensar a cultura e a experiência do homem com a história. Assim como a escrita e o cinema, que são duas formas de criação e de sublimação que ajudam a fazer com que o relacionamento entre ética e politica seja aprofundado. Até porque a política no Brasil prima por uma dívida para com a ética. Toda a melancolia e revolta que se abateram sobre nós enquanto povo, toda a desesperança, fruto dos restos deixados pelos devoradores que usurparam nossos impostos, nos conduzem a uma paisagem inóspita. Perdemos a crença na magia que sempre revestiu nossas maiores expectativas. Nossos corações líricos sangram, nossas vozes diariamente rugem ao ver as teias de aranha tecidas pelos canalhas que destruíram nossos sonhos mais urgentes. Educação, saúde e saneamento básico para a população. A ética virou cinzas, como o prédio devastado pelo fogo em Londres. Um esqueleto a representa. A questão que se coloca para mim, enquanto cidadã, é se assim como o meu texto, isso é irrecuperável. Ou se existe algo subjacente a essa catástrofe que nos atinge, que possa pulsionalmente ser re-criado. O “trono está manchado de sangue” sim, sem dúvida. Cenas do teatro do absurdo, que é uma falsificação ao mesmo tempo infame e inteligente da vida, nos afetam de forma trágica, uma vez que a contaminação é plena, total e irrestrita. Todos os setores desse corpo social estão sendo atingidos por um mar de lama premonitoriamente desencadeado pela tragédia de Mariana. Nada é por acaso. Muitos estão fragmentados pela falta de garantias e proteção social, o que pode ser visto como uma “dimensão existencial traumática ”, segundo Stolorow ( 2007). Mas a capacidade de superação do Homen é indiscutível, vide a própria história da humanidade. Somos um povo que tem como cerne de sua estruturação histórica, organizações psíquicas muito mais voltadas para a esperança do que para o desespero. A partir dessa concepção, apoio-me muito mais na força de um pensamento criativo e nas nossas pulsões de vida, de que encontraremos saídas  dignas para esse espanto tão intenso. 

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

ANIMAIS NOTURNOS

                                                         

Um filme sobre as sensações.  Esse é o caso de “Animais Noturnos" em cartaz. Concordo com Artur Xexéo quando ele fala que os primeiros 30 minutos do filme ‘são de deixar o espectador com o coração na mão” e discordo 100% quando ele desqualifica o filme, ao restringi-lo a um mero exercício estilístico de Tom Ford. Artur Xexéo não viu o mesmo filme que eu. Muito mais do que estilo , moda e diálogos supostamente ingênuos, o que pode ser visto na tela é um belíssimo e ousado passeio pelo universo das sensações e dos sentidos, daquilo que na maioria das vezes,  não cabe no verbal, Tom Ford torna “carnal” o que não tem como passar pelo simples dito. Torna literária uma experiência de horror, extremamente traumática, cuja intensidade se perderia numa simples narrativa. Daí minha maior discordância  da opinião de Xexéo, que banaliza a genialidade do roteiro, que, segundo ele, não é bem desenvolvido.  Os tais 30 minutos sensacionais, são uma pequena mostra do que subjaz às verdadeiras intenções do autor. Cultivada em estufa durante quase vinte anos, a vingança será maligna na sua forma mais brilhante e ardilosa. Esse o fundo do poço de “Animais Noturnos", o que cada um faz das suas dores e ressentimentos sofridos ao longo da vida. De que forma isso aparece? Quais as manifestações do inconsciente e de que tramas macabras ele é capaz?  Para que conteúdos psíquicos se abre a sensação? Quando e como se esculpe na consciência ?
A base de toda arte é a sensação e sob esse ponto de vista, dou nota dez para a obra em questão, que retrata em síntese extrema, uma mulher rica, sofisticadíssima, dona de uma galeria de arte famosa, infeliz no casamento , que inesperadamente recebe uma encomenda de presente: o esboço de um livro escrito por um ex-marido , do qual está separada há quase vinte anos e surpreendentemente, dedicado a ela  "do fundo do coração”. Ela começa a ler e é imediatamente capturada pelas primeiras cenas descritas, que passam a se alternar entre a exibição na tela e a leitura progressiva das cenas narradas pelo escritor. Trata-se de uma família que sai de viagem e que é abordada numa estrada deserta à noite por uma bando de marginais, que produzem uma série de torturas monstruosas, num pesadelo que vai tornando o lugar do espectador não só profundamente desconfortável, mas, insuportável.  Idem o de Susan ( Amy Adams) a leitora dos horrores. Ela segue, porém , devorando página por página e dessa forma , livro e filme se entrelaçam  em imagens alternadas, o que muitas vezes confunde a espectador. O personagem principal do livro é um homem interpretado por Jake Gyllenhaal, que tem a família dizimada no acidente. Ele sobrevive porque se esconde e a busca pelos assassinos torturadores, com a ajuda de um delegado condenado à morte por uma doença terminal, é a sua única possibilidade de redenção e expiação de uma culpa que o consome. Ele foi fraco e omisso. Não lutou suficientemente. Acovardou-se. Aqui vale ressaltar que em uma de suas rememorizações relativas ao ex- marido durante a leitura, Susan lembra de algumas passagens da relação dos dois. Ele era sensível demais, ela complexa demais. A vida burguesa imposta pela condição dele e que a sofisticada mãe como um oráculo diz que ela não suportaria, rapidamente se desidealizou. O casamento acabou com o que ela chama de "extrema  brutalidade de sua parte”. Além de desqualificá-lo pela sua fragilidade como escritor, o traiu e fez um aborto de um filho dele. A cena em que ela sai da clínica acompanhada pelo amante é dolorosamente presenciada pelo ex. Resumindo: ele saiu da relação absolutamente esfacelado. Susan , por seu lado refez–se rapidamente.  
Essa pequena e superficial exposição do tema é apenas para criar a possibilidade de chegar ao que interessa. Susan e Edward, que só aparece nas cenas em que  história do livro é exposta na tela , nunca mais se viram. Ao terminar a leitura, ela manda um e-mail para ele elogiando o livro e falando do impacto que teve com a violência e a força de sua escrita. Propõe um encontro. Ele diz: ”Onde e quando vc quiser”.
O resto é para quem viu o filme. Não se quer aqui entregar o final . 
Sabemos que nós humanos somos inescapavelmenete  dependentes das sensações que nossos orgãos sensoriais nos transmitem. O que não for sensação não existe para nós, pois não podemos compreender o mundo passando ao largo de nossos sentidos. Esse o grande mote de "Animais Noturnos". Edward não quer que Susan SAIBA o pavor que ele experimentou. Ele quer que ela SINTA na pele as sensações que durante anos o atormentaram. Ele quer quebrar a barreira da frieza herdada da mãe, ele quer desorganizar e instaurar o caos, ele quer atravessar a casca e chegar no núcleo. Ele quer Vingança.
Se fosse um filme de Tarantino, por exemplo, teríamos sangue respingando na tela, mas a sensibilidade de Tom Ford escolheu um outro caminho extremamente oportuno, num mundo onde as sensações mais originais tem inúmeros substitutos. A crueldade e os traços de memória cravados em Edward como tatuagens na alma, são transformados em escritura de teor chocante, já que só dessa forma ele supõe afetar Susan, mostrando que atrás de sua sensibilidade desqualificada no passado, também se esconde uma grande violência. Se era disso que ela sentia falta, nada mais tem a duvidar. Ele não só traz em si a animalidade que habita todo ser humano, como sabe muito bem como usá-la . Basta querer.
Filmaço, portanto, que mostra a passagem da sensação puramente enquanto tal, à emoção artistica , dando a ela um estatuto primordial de arte. Ao espectador resta uma rica experiência estética que atravessa seus sentidos.
Xexéo, vá ver outra vez.

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Querido amigo Lugarinho, que bom saber que alguém "sentiu " o mesmo filme que eu. Bjs gratos pelo comentário.




terça-feira, 25 de outubro de 2016

MEU REI

Entre todas as artes. inegavelmente, a que mais me captura é o cinema. Ver um filme é quase um ato de devoção que nutre minha alma e meu espirito. Saio alimentada, saciada, revigorada pela experiência poética que mexe com minha inteligência e minhas paixões. É quase um culto essa abstração da vida real que o cinema propicia, pois há algo sempre mágico, seja na história ou na narrativa, na fotografia ou nas imagens , nas interpretações ou nos cenários. Esse foi o caso de "MEU REI", filme francês visto neste final de semana, que me siderou . Dirigido por uma mulher e asfixiantemente interpretado por Vincent Cassel e Emmanuelle Bercot, que arrebatou a Palma de Ouro do Festival de Cannes/2016, esse poderia ser, apenas, mais um daqueles inúmeros filmes que falam da relação conturbada de um casal. Mas não. Ele chega muito perto dos relatos da vida cotidiana de um casamento inundado de intensidades à deriva. Os personagens parecem saídos das salas dos consultórios psicanalíticos e invadem a tela cinematográfica, num percurso contrário à genialidade de Woody Allen na " Rosa Púrpura do Cairo", onde o ator sai da tela e vem dialogar com a espectadora.Em "MEU REI" impossível ficar de fora, alienado.
As neuroses e overdoses de uma relação passional assaltam nossos sentidos e nos revelam muito do humano, demasiadamente humano. Existem encontros que se definem por uma frase do personagem de Vincent : "Você quer me deixar pela mesma razão que te atraiu em mim.",  diz Georgio  para sua mulher Tony. Ou seja, aquilo mesmo que atrai é o que inviabiliza. Há algo entre os dois que é irredutivel. Atração fatal, atração mortal. Vida pulsante, morte espreitante. Construção e destruição. Uma gangorra incessante, oscilante.
Georgio é o protótipo perfeito de um sedutor irresistível aos olhos de uma mulher, no caso Tony, vinda de uma relação que arrasou sua auto-estima. Ele é um caçador com pontaria certeira e ela a presa perfeita. Aliança vigorosa de dificil "desfazimento", como diria o poeta Manoel de Barros.
A diretora conduz de forma brilhante esse quebra cabeças que vai se engendrando , a medida em que Tony sofre um "acidente" e é obrigada a parar. Nessa parada obrigatória que o inconsciente lhe impõe, ela vai fazendo uma retrospectiva , uma refilmagem por outro ângulo dessa história: o encontro, a captura, a loucura, o fascinio reciproco, o auge e a queda progressiva.
Mais uma citação do filme: Georgio só consegue viver em forma de um eletrocardiograma de um paciente vital. O eletro linear de um paciente que está morrendo , ou seja, bip...bip... bip não lhe cabe. 
Os diálogos e a rapidez com que ele se movimenta nos inquietam na cadeira, nos fazem até rir, tal a velocidade , o egoísmo, a arrogância com que ele muda de posição. Tony vive num mundo interno , onde os rítmos são outros e por mais que ela se esforce, não há como acompanhar a pulsionalidade violenta do parceiro.
Muitos casais não se dão conta , mas esse é um fator importantíssimo num relacionamento a dois: os rítmos de um jamais vâo ser exatamente o do outro. E quando falo de rítmo , falo da forma mais abrangente possível. Desde a fruição de uma comida à um  orgasmo. Esse é um grande desafio num casamento, a sensibilidade e a percepção do tempo de cada um. Giorgio é um narcisista-modelo e Tony , uma histérica exemplar, que corre desesperadamente atrás do prejuízo , na tentativa de salvar o que talvez, sob determinados aspectos, jamais tenha salvação. Eles são  adictos , a relação tem um caráter viciante e daí vem um dos principais recados da diretora Maiwenn: existem temporalidades conciliáveis e outras inconciliáveis. Não existe negociação possível, mesmo que o amor seja profundo demais. Ele não dá conta de tudo o que se passa entre dois seres que sustentam suas diferenças e suas visões de mundo.
Só a vida, a maturidade, a repetição do mesmo e uma insistência permanente de suportar as patologias recíprocas, é que podem parir a sustentabilidade de uma união verdadeira e para sempre instável.
A "estabilidade"só se encontra na Revista Caras ou nos relatos para a platéia.. Aliás, graças a Deus .O fato de oscilarmos permanentemente, em graus diversos, é óbvio, garante a nossa humanidade. Como bem diz Caetano :
"A vida é real e de viés"

Angela Villela
25/102016




quarta-feira, 31 de agosto de 2016

ESCRITOS SOBRE A ARROGÂNCIA

 INTRODUÇÂO: 
A soberba precede a ruína, o espírito arrogante vem antes da queda.
"Por isso também a literatura de Clarice não pode ser vista como um "projeto intelectual". Colocou-se, sempre, além da inteligência. A inteligência não a interessava _ buscava, ao contrário, aquilo que lhe escapava. Teve na humildade um valor fundamental. Clarice escreveu para nos fazer encarar a insuficiência da inteligência. Em conseqüência: para nos colocar diante de nossa fragilidade e impotência. Disse, certa vez, Otto Lara Resende: "É engraçado como Clarice me atinge e me enriquece, ao mesmo tempo em que me faz certo mal, me faz sentir menos sólido e seguro".
A literatura de Clarice Lispector nos carrega para um terreno sem salvaguardas. Não temos garantias, não estamos protegidos. De quem? De nós mesmos. A queda em si não é uma experiência fácil. Daí que a escrita de Clarice é ciclônica (cheia de correntes que convergem das bordas para o centro, como nos ciclones). É, também, um turbilhão (ventos nos atravessam em alta velocidade e nos mobilizam). Parece, para alguns, uma escrita enlouquecida. Tenho um amigo, psicanalista, que sempre me pergunta: "Por que você insiste em ler essa louca? Por que ler essa mulher que diz sempre a mesma coisa?" Clarice buscou o coração selvagem da vida. É uma busca sem fim, em que os golpes e as quedas se repetem e se repetem. Ainda assim, é uma busca que nos torna menos arrogantes e mais humanos." (JOSÉ CASTELLO)


                                                       ( Continua)