Um filme sobre as sensações. Esse é o
caso de “Animais Noturnos" em cartaz. Concordo com Artur Xexéo quando ele
fala que os primeiros 30 minutos do filme ‘são de deixar o espectador com o
coração na mão” e discordo 100% quando ele desqualifica o filme, ao restringi-lo
a um mero exercício estilístico de Tom Ford. Artur Xexéo não viu o mesmo filme
que eu. Muito mais do que estilo , moda e diálogos supostamente ingênuos, o que
pode ser visto na tela é um belíssimo e ousado passeio pelo universo das
sensações e dos sentidos, daquilo que na maioria das vezes, não cabe no verbal, Tom
Ford torna “carnal” o que não tem como passar pelo simples dito. Torna
literária uma experiência de horror, extremamente traumática, cuja intensidade
se perderia numa simples narrativa. Daí minha maior discordância da opinião de Xexéo, que
banaliza a genialidade do roteiro, que, segundo ele, não é bem
desenvolvido. Os tais 30 minutos
sensacionais, são uma pequena mostra do que subjaz às verdadeiras intenções do
autor. Cultivada em estufa durante quase vinte anos, a vingança será maligna na
sua forma mais brilhante e ardilosa. Esse o fundo do poço de “Animais Noturnos", o que
cada um faz das suas dores e ressentimentos sofridos ao longo da vida. De que
forma isso aparece? Quais as manifestações do inconsciente e de que tramas
macabras ele é capaz? Para que conteúdos psíquicos se abre a sensação? Quando e como se esculpe na consciência ?
A
base de toda arte é a sensação e sob esse ponto de vista, dou nota dez para a
obra em questão, que retrata em síntese extrema, uma mulher rica,
sofisticadíssima, dona de uma galeria de arte famosa, infeliz no casamento ,
que inesperadamente recebe uma encomenda de presente: o esboço de um livro
escrito por um ex-marido , do qual está separada há quase vinte anos e surpreendentemente, dedicado a ela "do fundo do coração”. Ela começa a ler e é imediatamente
capturada pelas primeiras cenas descritas, que passam a se alternar entre a
exibição na tela e a leitura progressiva das cenas narradas pelo escritor. Trata-se de uma família que sai
de viagem e que é abordada numa estrada deserta à noite por uma bando de
marginais, que produzem uma série de torturas monstruosas, num pesadelo que vai
tornando o lugar do espectador não só profundamente desconfortável, mas, insuportável. Idem o de Susan ( Amy Adams) a leitora dos horrores. Ela segue, porém ,
devorando página por página e dessa forma , livro e filme se entrelaçam em
imagens alternadas, o que muitas vezes confunde a espectador. O personagem
principal do livro é um homem interpretado por Jake Gyllenhaal, que tem a
família dizimada no acidente. Ele sobrevive porque se esconde e a busca pelos
assassinos torturadores, com a ajuda de um delegado condenado à morte por uma
doença terminal, é a sua única possibilidade de redenção e expiação de uma culpa
que o consome. Ele foi fraco e omisso. Não lutou suficientemente. Acovardou-se. Aqui vale ressaltar que em uma de suas rememorizações relativas ao ex- marido durante a leitura, Susan lembra de
algumas passagens da relação dos dois. Ele era sensível demais, ela complexa
demais. A vida burguesa imposta pela condição dele e que a sofisticada mãe como um oráculo diz que ela não suportaria, rapidamente se desidealizou. O
casamento acabou com o que ela chama de "extrema brutalidade de sua parte”. Além de
desqualificá-lo pela sua fragilidade como escritor, o traiu e fez um aborto de
um filho dele. A cena em que ela sai da clínica acompanhada pelo amante é
dolorosamente presenciada pelo ex. Resumindo: ele saiu da relação absolutamente
esfacelado. Susan , por seu lado refez–se rapidamente.
Essa pequena e superficial exposição do tema
é apenas para criar a possibilidade de chegar ao que interessa. Susan e Edward,
que só aparece nas cenas em que história
do livro é exposta na tela , nunca mais se viram. Ao terminar a leitura, ela
manda um e-mail para ele elogiando o livro e falando do impacto que teve com a
violência e a força de sua escrita. Propõe um encontro. Ele diz: ”Onde e quando
vc quiser”.
O resto é para quem viu o filme. Não se quer aqui entregar o final .
Sabemos que nós humanos somos inescapavelmenete dependentes das sensações que nossos orgãos sensoriais nos transmitem. O que não for sensação não existe para nós, pois não podemos compreender o mundo passando ao largo de nossos sentidos. Esse o grande mote de "Animais Noturnos". Edward não quer que Susan SAIBA o pavor que ele experimentou. Ele quer que ela SINTA na pele as sensações que durante anos o atormentaram. Ele quer quebrar a barreira da frieza herdada da mãe, ele quer desorganizar e instaurar o caos, ele quer atravessar a casca e chegar no núcleo. Ele quer Vingança.
Se fosse um filme de Tarantino, por exemplo, teríamos sangue respingando na tela, mas a sensibilidade de Tom Ford escolheu um outro caminho extremamente oportuno, num mundo onde as sensações mais originais tem inúmeros substitutos. A crueldade e os traços de memória cravados em Edward como tatuagens na alma, são transformados em escritura de teor chocante, já que só dessa forma ele supõe afetar Susan, mostrando que atrás de sua sensibilidade desqualificada no passado, também se esconde uma grande violência. Se era disso que ela sentia falta, nada mais tem a duvidar. Ele não só traz em si a animalidade que habita todo ser humano, como sabe muito bem como usá-la . Basta querer.
Filmaço, portanto, que mostra a passagem da sensação puramente enquanto tal, à emoção artistica , dando a ela um estatuto primordial de arte. Ao espectador resta uma rica experiência estética que atravessa seus sentidos.
Xexéo, vá ver outra vez.
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Querido amigo Lugarinho, que bom saber que alguém "sentiu " o mesmo filme que eu. Bjs gratos pelo comentário.
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Querido amigo Lugarinho, que bom saber que alguém "sentiu " o mesmo filme que eu. Bjs gratos pelo comentário.
Um comentário:
Vários críticos americanos também fizeram restrições ao filme. No meu entender,assim como eles, Xexéo (cujo artigo não li) fizeram uma "leitura" do filme e não o ouviram. Susan leu a dor e ao final "ouviu" a dor. A vingança como um grito, do grito primal de Edward personagem, ao livro-grito-ato-arte. Talvez esses críticos esperassem um entorno sujo, feio, para este tipo de história. Algo mais ao nível de David Lynch. Armadilha de Tom Ford conseguiu contornar em sua elegância, subvertendo expectativas.
Quanto ao Apartamento, que você citou no Facebook, apesar de semelhante no tema da vingança, não conseguiu atingir os meus sentidos. Lack cultural? Talvez.
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