Era um dia como outro qualquer. Acordou, tomou café, viu um pouco de tv, arrumou a mochila, almoçou e saiu para o colégio. Havia marcado o de sempre com os amigos: se encontrariam às 12h no ponto do Humaitá e pegariam o 570. Lá chegando, porém, constatou que era o primeiro. Sentou-se calmamente num banquinho, ipod no ouvido, ligado na música e na espera da galera. De repente, um corpo estranho e uma voz desconhecida atravessaram sua quietude.
"Me passa isso aí, moleque".
Ainda desconectado do que acontecia, foi passando o aparelhinho, enquanto percebia, simultaneamente, que haviam mais duas figuras no bando que, de certo, não era o seu. O segundo comando era de que entrasse rápido no ônibus que havia parado no ponto, naquele exato momento. Diante da alegação de que aquele não era o seu ônibus, ouviu:
"Entra nesse mesmo, senão te encho de porrada". Entrou, mas não se acomodou, não aceitou a usurpação, o delito, a humilhação.
No ponto seguinte saltou e começou a correr de volta para o mesmo local. Precavido, atravessou a rua e, à distância, percebeu que os três continuavam no mesmo lugar. Pegou o celular que havia escapado ao assalto dentro da mochila, ligou para o 190 e em seguida para o pai, relatando o que havia acontecido. Por milagre , a polícia apareceu em cinco minutos e prendeu os "rapazes". Com o pai, foi para a delegacia fazer um B.O. Através do vidro que o preservava de ser visto, reconheceu os assaltantes, que tinham 16, 17 e 18 anos. Um pouco mais do que ele.
Dessa forma, meu neto exerceu seu direito mais do que humano de reaver o que lhe cabia por direito, escapando, espertamente, da cultura do medo que nos torna reféns em qualquer parte desse país, onde a substituição de uma justiça punitiva por uma impunidade progressiva, recoberta por um assistencialismo político manipulatório, tornou o delito uma eterna “circunstância sócio-psicológica”. É a célebre banalidade do mal , cunhada por Hannah Arendt , que torna a vida tão opressiva. Vamos que nem gado para o matadouro todo dia, aceitando a sina e as regras do jogo social alienante. Vão-se os tênis, celulares,o dinheiro ganho com o suor do trabalho, mas ficam os dedos. Desse assujeitamento, dessa adaptação, M.... escapou. Na contramão da violência imposta, com inteligência e cuidado de si, subverteu as regras desse jogo, feito da falta de medidas justas e cabíveis, que tem a ver com a perversão, a obscenidade política e o desrespeito à cidadania. Sim , porque o Estado e suas leis não pensam nele e em outros jovens que são acuados em seu cotidiano.
Muito se tem discutido nesses últimos dias, diante da violência deflagrada nas ruas, se a maioridade penal deve ser antecipada. Se tivéssemos a garantia de que esses menores teriam uma inserção social compatível com a dignidade que qualquer ser humano faz jus, ou seja , educação, cuidados e assistência psicológica e médica, certamente não estaríamos aqui radicalizando e clamando por justiça. Mas é, exatamente, porque conhecemos esse vácuo deixado pelo governo e a certeza de que esses cuidados não acontecerão, pelo contrário, só veremos fachadas e tapumes das "sujeiras" que assolam a cidade, que esse clamor está ganhando força. Ontem, 21/5, um leitor do Globo deu uma sugestão que considero perfeita: que o comandante do 23ºBPM deixasse seu filho na rua, nos horários e locais em que a polícia sabe que os assaltos estão ocorrendo. Não há direitos humanos para quem simplesmente quer ir e vir de casa para a escola ou para o trabalho.Quem sabe assim ele teria uma experência mais visível e concreta de como está difícil caminhar nas ruas dessa cidade ainda partida. Isso sem contar as bicicletas roubadas..... Não há direitos humanos para quem simplesmente quer ir e vir.
Muito se tem discutido nesses últimos dias, diante da violência deflagrada nas ruas, se a maioridade penal deve ser antecipada. Se tivéssemos a garantia de que esses menores teriam uma inserção social compatível com a dignidade que qualquer ser humano faz jus, ou seja , educação, cuidados e assistência psicológica e médica, certamente não estaríamos aqui radicalizando e clamando por justiça. Mas é, exatamente, porque conhecemos esse vácuo deixado pelo governo e a certeza de que esses cuidados não acontecerão, pelo contrário, só veremos fachadas e tapumes das "sujeiras" que assolam a cidade, que esse clamor está ganhando força. Ontem, 21/5, um leitor do Globo deu uma sugestão que considero perfeita: que o comandante do 23ºBPM deixasse seu filho na rua, nos horários e locais em que a polícia sabe que os assaltos estão ocorrendo. Não há direitos humanos para quem simplesmente quer ir e vir de casa para a escola ou para o trabalho.Quem sabe assim ele teria uma experência mais visível e concreta de como está difícil caminhar nas ruas dessa cidade ainda partida. Isso sem contar as bicicletas roubadas..... Não há direitos humanos para quem simplesmente quer ir e vir.
Quero saber se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) inclui meus netos.Quem os protege? Em poucos meses esses pivetes estarão no mesmo ponto. Quem protege as milhares de mulheres honestas, que indo e vindo horas a fio, dentro de ônibus lotados para seus trabalhos, se arriscam a serem violentadas? Quem protege os aposentados, que ao retirarem a “fortuna “ que o governo lhes paga, são derrubados covardemente na porta dos bancos? A crueldade impera e o ECA....neca.
Os ingleses tem uma expressão perfeita para definir o que vivemos nesse país de fachada inescrupulosa: “disgusting”!
De resto, que orgulho ver esse neto aprender a sobreviver numa terra de leis absolutamente deturpadas, sendo, porém, minoria, segundo estatísticas que demonstram quantos outros sucumbiram, por conta da ignorância, da injustiça e da omissão dos podres poderes. Uma tragédia social que nem a luminosidade deslumbrante outonal consegue apagar.
Só mais um detalhe: pagamos impostos que vão para onde, por sinal?