quarta-feira, 21 de junho de 2017

TRONO MANCHADO DE SANGUE

   Esse título ecoou dias a fio na minha cabeça. por conta da confluência de múltiplos elementos. A experiência estética abre nosso espírito para livres associações e minha mente foi sacudida, assim como minha escuta, quando  alguém mencionou que Akira Kurosawa havia feito uma versão de Macbeth, transpondo o universo shakespeariano da Escócia para o Japão Feudal. Desde então não mais me aquietei. Trono manchado de sangue? Como não associar ao que está acontecendo politicamente no Brasil? Afinal, cinema, psicanálise, literatura e política são motivos suficientes, para, no mínimo, produzir um texto. O caráter relacional desses itens apresentava uma grande riqueza de sentido. Uma certa fecundidade tomou conta de mim e num átimo, o escrevi. Infelizmente, ao passar a versão escrita no Word para o blog, perdi o artigo. Era apenas um textinho, mas que dor. Procurei-o desesperadamente. Tornou-se irrecuperável. Perdeu-se de mim. A sensação desagradável demandou um certo luto. Porém, a pulsão voltou a insistir, não desistiu e eis-me aqui escrevendo outro artigo. Afinal, não é tarefa da análise plasmar âmbitos? Vivendo numa época de tramas macabras e de ódios, sinto-me atraída pela idéia de que podemos extrair algo de interessante dessa conjunção, proporcionada pelo filme de Kurosawa e a obra de Shakespeare. “Trono manchado de sangue”é a tradução  em português para o que, em japonês, recebeu o titulo de " Castelo da Teia de Aranha". A história do filme gira em torno de dois guerreiros, Taketoki Washizu e Yoshiaki Miki, que se deparam na floresta com um espírito que faz previsões muito assustadoras.a respeito do futuro. Ambos não levam a sério os mal-ditos. Zombam, inclusive, deles. Inadvertidamente,Taketoki  compartilha a experiência com sua mulher, a Senhora Asaji, que se torna uma cópia de Lady Macbeth, envenenando e instigando o marido a assassinar o amigo, que supostamente iria conspirar contra a família Washizu , arruinando-a. Na ãnsia de se tornar o Senhor do Castelo de Areia e com medo de que as palavras da esposa se tornassem realidade,  ele consuma o ato e mata Miki. 
Existe algo mais atual do que as histórias que atravessam os tempos e a vida? Hamlet, Macbeth, Ricardo III ou Lear?  Estamos de volta ao século XVI, com suas tramas tecidas nas intrigas, na ambição, nos assassinatos, nas disputas de poder, nas conspirações e traições urdidas na penumbra e nos porões dos “castelos.” Quem matou Celso Daniel e supostamente, Teori Zawascky? Shakespeare é totalmente contemporâneo. E Kurosawa sabia disso. Também Freud, no desenvolvimento de suas idéias, pensou não apenas na arte em geral, mas nos sonhos como experiência que leva o sonhador a recompô-lo e a relatá-lo em discurso. Aproximamos, assim, sonhos e desejos, de um filme narrativo ou de um texto literário, na medida em que é o desejo do autor que move a obra. Tal como acontece na própria clínica psicanalítica. Merleau-Ponty, por exemplo, explora essa relação como sendo  uma espécie de "instâncias contemporâneas", que atualizam uma nova percepção do homem-em-situação, ou uma nova concepção do olhar como atividade dotada de sentido. Vários cineastas brincam com essas possibilidades, como é o caso de Buñuel, que junto com Salvador Dali, produziu cenas surrealistas em ‘O Cão Andaluz”. No filme, uma lâmina cortava um olho e essa cena foi baseada num sonho de Buñuel, em que ele dizia ter visto uma nuvem cortando a lua. 
Podemos nos interrogar, então, como suportar os pesadelos  e tormentos surrealistas de nossa época? Só através da arte, quando o sujeito se experimenta como sendo um outro, uma alteridade, que realiza uma experiência psíquica reveladora do inconsciente. Só sendo “artistas em construção permanente”, já que a dertrutividade é demasiadamente real e concreta. Freud sabia disso e também, de que a pulsão de morte não se articula no registro da linguagem, o que impõe ao sujeito a necessidade de inscrição num registro simbólico. Isso coloca a psicanálise hoje, mais do que nunca, como um instrumento precioso para se pensar a cultura e a experiência do homem com a história. Assim como a escrita e o cinema, que são duas formas de criação e de sublimação que ajudam a fazer com que o relacionamento entre ética e politica seja aprofundado. Até porque a política no Brasil prima por uma dívida para com a ética. Toda a melancolia e revolta que se abateram sobre nós enquanto povo, toda a desesperança, fruto dos restos deixados pelos devoradores que usurparam nossos impostos, nos conduzem a uma paisagem inóspita. Perdemos a crença na magia que sempre revestiu nossas maiores expectativas. Nossos corações líricos sangram, nossas vozes diariamente rugem ao ver as teias de aranha tecidas pelos canalhas que destruíram nossos sonhos mais urgentes. Educação, saúde e saneamento básico para a população. A ética virou cinzas, como o prédio devastado pelo fogo em Londres. Um esqueleto a representa. A questão que se coloca para mim, enquanto cidadã, é se assim como o meu texto, isso é irrecuperável. Ou se existe algo subjacente a essa catástrofe que nos atinge, que possa pulsionalmente ser re-criado. O “trono está manchado de sangue” sim, sem dúvida. Cenas do teatro do absurdo, que é uma falsificação ao mesmo tempo infame e inteligente da vida, nos afetam de forma trágica, uma vez que a contaminação é plena, total e irrestrita. Todos os setores desse corpo social estão sendo atingidos por um mar de lama premonitoriamente desencadeado pela tragédia de Mariana. Nada é por acaso. Muitos estão fragmentados pela falta de garantias e proteção social, o que pode ser visto como uma “dimensão existencial traumática ”, segundo Stolorow ( 2007). Mas a capacidade de superação do Homen é indiscutível, vide a própria história da humanidade. Somos um povo que tem como cerne de sua estruturação histórica, organizações psíquicas muito mais voltadas para a esperança do que para o desespero. A partir dessa concepção, apoio-me muito mais na força de um pensamento criativo e nas nossas pulsões de vida, de que encontraremos saídas  dignas para esse espanto tão intenso. 

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

ANIMAIS NOTURNOS

                                                         

Um filme sobre as sensações.  Esse é o caso de “Animais Noturnos" em cartaz. Concordo com Artur Xexéo quando ele fala que os primeiros 30 minutos do filme ‘são de deixar o espectador com o coração na mão” e discordo 100% quando ele desqualifica o filme, ao restringi-lo a um mero exercício estilístico de Tom Ford. Artur Xexéo não viu o mesmo filme que eu. Muito mais do que estilo , moda e diálogos supostamente ingênuos, o que pode ser visto na tela é um belíssimo e ousado passeio pelo universo das sensações e dos sentidos, daquilo que na maioria das vezes,  não cabe no verbal, Tom Ford torna “carnal” o que não tem como passar pelo simples dito. Torna literária uma experiência de horror, extremamente traumática, cuja intensidade se perderia numa simples narrativa. Daí minha maior discordância  da opinião de Xexéo, que banaliza a genialidade do roteiro, que, segundo ele, não é bem desenvolvido.  Os tais 30 minutos sensacionais, são uma pequena mostra do que subjaz às verdadeiras intenções do autor. Cultivada em estufa durante quase vinte anos, a vingança será maligna na sua forma mais brilhante e ardilosa. Esse o fundo do poço de “Animais Noturnos", o que cada um faz das suas dores e ressentimentos sofridos ao longo da vida. De que forma isso aparece? Quais as manifestações do inconsciente e de que tramas macabras ele é capaz?  Para que conteúdos psíquicos se abre a sensação? Quando e como se esculpe na consciência ?
A base de toda arte é a sensação e sob esse ponto de vista, dou nota dez para a obra em questão, que retrata em síntese extrema, uma mulher rica, sofisticadíssima, dona de uma galeria de arte famosa, infeliz no casamento , que inesperadamente recebe uma encomenda de presente: o esboço de um livro escrito por um ex-marido , do qual está separada há quase vinte anos e surpreendentemente, dedicado a ela  "do fundo do coração”. Ela começa a ler e é imediatamente capturada pelas primeiras cenas descritas, que passam a se alternar entre a exibição na tela e a leitura progressiva das cenas narradas pelo escritor. Trata-se de uma família que sai de viagem e que é abordada numa estrada deserta à noite por uma bando de marginais, que produzem uma série de torturas monstruosas, num pesadelo que vai tornando o lugar do espectador não só profundamente desconfortável, mas, insuportável.  Idem o de Susan ( Amy Adams) a leitora dos horrores. Ela segue, porém , devorando página por página e dessa forma , livro e filme se entrelaçam  em imagens alternadas, o que muitas vezes confunde a espectador. O personagem principal do livro é um homem interpretado por Jake Gyllenhaal, que tem a família dizimada no acidente. Ele sobrevive porque se esconde e a busca pelos assassinos torturadores, com a ajuda de um delegado condenado à morte por uma doença terminal, é a sua única possibilidade de redenção e expiação de uma culpa que o consome. Ele foi fraco e omisso. Não lutou suficientemente. Acovardou-se. Aqui vale ressaltar que em uma de suas rememorizações relativas ao ex- marido durante a leitura, Susan lembra de algumas passagens da relação dos dois. Ele era sensível demais, ela complexa demais. A vida burguesa imposta pela condição dele e que a sofisticada mãe como um oráculo diz que ela não suportaria, rapidamente se desidealizou. O casamento acabou com o que ela chama de "extrema  brutalidade de sua parte”. Além de desqualificá-lo pela sua fragilidade como escritor, o traiu e fez um aborto de um filho dele. A cena em que ela sai da clínica acompanhada pelo amante é dolorosamente presenciada pelo ex. Resumindo: ele saiu da relação absolutamente esfacelado. Susan , por seu lado refez–se rapidamente.  
Essa pequena e superficial exposição do tema é apenas para criar a possibilidade de chegar ao que interessa. Susan e Edward, que só aparece nas cenas em que  história do livro é exposta na tela , nunca mais se viram. Ao terminar a leitura, ela manda um e-mail para ele elogiando o livro e falando do impacto que teve com a violência e a força de sua escrita. Propõe um encontro. Ele diz: ”Onde e quando vc quiser”.
O resto é para quem viu o filme. Não se quer aqui entregar o final . 
Sabemos que nós humanos somos inescapavelmenete  dependentes das sensações que nossos orgãos sensoriais nos transmitem. O que não for sensação não existe para nós, pois não podemos compreender o mundo passando ao largo de nossos sentidos. Esse o grande mote de "Animais Noturnos". Edward não quer que Susan SAIBA o pavor que ele experimentou. Ele quer que ela SINTA na pele as sensações que durante anos o atormentaram. Ele quer quebrar a barreira da frieza herdada da mãe, ele quer desorganizar e instaurar o caos, ele quer atravessar a casca e chegar no núcleo. Ele quer Vingança.
Se fosse um filme de Tarantino, por exemplo, teríamos sangue respingando na tela, mas a sensibilidade de Tom Ford escolheu um outro caminho extremamente oportuno, num mundo onde as sensações mais originais tem inúmeros substitutos. A crueldade e os traços de memória cravados em Edward como tatuagens na alma, são transformados em escritura de teor chocante, já que só dessa forma ele supõe afetar Susan, mostrando que atrás de sua sensibilidade desqualificada no passado, também se esconde uma grande violência. Se era disso que ela sentia falta, nada mais tem a duvidar. Ele não só traz em si a animalidade que habita todo ser humano, como sabe muito bem como usá-la . Basta querer.
Filmaço, portanto, que mostra a passagem da sensação puramente enquanto tal, à emoção artistica , dando a ela um estatuto primordial de arte. Ao espectador resta uma rica experiência estética que atravessa seus sentidos.
Xexéo, vá ver outra vez.

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Querido amigo Lugarinho, que bom saber que alguém "sentiu " o mesmo filme que eu. Bjs gratos pelo comentário.