quarta-feira, 18 de novembro de 2015

GODARD E O ATAQUE À PARIS


Saio do cinema com a sensação de que havia assistido a um filme inusitado, que apesar de parecer um labirinto onde algumas vezes me perdi, ao mesmo tempo me emocionou profundamente. Tive a nítida sensação de que por trás daquela estranha mistura de colagens, havia algo de genial. Um quebra cabeças desconfortável a ser experimentado.  Havia lido uma crítica que dizia não haver a intenção que se compreendesse absolutamente tudo o que é exibido, tanto que o próprio Godard pediu que nem todas as falas fossem traduzidas na legenda – a confusão, ou a dificuldade de compreensão, faziam  parte da experiência que é o próprio  filme. As imagens são aleatórias e instigam à compreensão, mas à   medida em que me entreguei aos sons, gestos e cores, relaxei no sentido de não tentar definir e interpretar nada. Entreguei-me aos espantos e me deixei surpreender pelas sensações.  Afinal, o aparato tecnológico é uma das vertentes da crítica de Godard. A humanidade está viciada nas telinhas de captura, que tornam tudo previsível e confortável , o que estabeleceu  uma única forma de olhar que não consegue ver e entender certas desconexões. Como psicanalista, portanto, ver o filme foi um exercício familiar. Afinal, é com essa multiplicidade de linguagens que me deparo na clínica o tempo todo.                                      
Em sua crítica no Globo a respeito de “Adeus à Linguagem”, Ruy Gardinier destaca “que esse questionamento do olhar viciado, no filme é feito através de uma colagem brilhante de citações (Proust, Rilke, Valéry, entre muitos outros) e é operado principalmente através do uso não convencional do 3D, como também  pela formação de duas imagens simultâneas, uma em cada olho, que confundem a percepção e obrigam o espectador a descobrir por si mesmo o que está sendo visto.” Na  minha opinião, a genialidade do filme está exatamente nessa possibilidade que ele cria de instigar o espectador a sair de uma linguagem convencional para uma outra absurda, surrealista, kafkiana. O discurso na tela não pode ser controlado e muito menos traduzido. O desconforto no cinema é evidente. Pessoas reclamam e saem. Ruídos permanentes são ouvidos, porque não há escuta para a subversão proposta. Imagino a ironia de Godard ao ver  os viciados  na linguagem formal, inquietos em suas cadeiras. Gardinier concluiu que “Adeus à linguagem” é seu filme mais radical, e toda sua radicalidade é traduzida em esplendor e fascínio. Pois trata-se de espreitar, de seguir o movimento do filme, mas de modo algum tentar pensá-lo ou defini-lo. 
E porque coloco Godard junto à Paris do dia 13 de novembro?                 
Que relações  pretendo estabelecer? Após o choque brutal advindo dos ataques dessa sexta feira negra, li e assisti a milhares de reportagens, entrevistas  e opiniões sobre o que teria acontecido. São inúmeras as especulações de todos os angustiados, como eu, que tentam aplacar sua ignorância (no sentido de ignorar mesmo) com uma explicação mínima a radicalidade dos atos...Uma Guerra Santa em pleno século XXI ?              
O Estado Islãmico coloca para o mundo inteiro um enigma_: que línguagem é essa que é intraduzível, principalmente para o Ocidente? Que bases e princípios sustentam a barbárie que os impulsiona? Quando leio ou escuto a expressão “Luta contra o Fundamentalismo”, penso imediatamente na precariedade das mentes que supõem ter algum controle sobre a complexidade, o emaranhado, a mistura étnica, religiosa, tribal que subjaz ao termo.. Como Godard , o Estado Islâmico quebra, destrói, anula a linguagem óbvia. Todas as contradições possíveis que permeiam as relações humanas estão presentes na “morte da lógica “ trazida pelos adoradores de Alá. É impossível traduzir de uma linguagem para outra. Eles não só mutilam corpos , eles mutilam a fala. No final de “Alphaville”, o personagem Natasha diz: “Há palavras que não sei”. Ficamos  “speechlesses” , com milhares de hipóteses frágeis, já que a constituição psíquica dessas subjetividades é inacessível para a maioria da humanidade. O que faz milhares de jovens do mundo inteiro serem abduzidos na internet pelos gênios do mal? O que os atrai a ponto de se tornarem carrascos que cortam cabeças de pessoas inocentes? O que eles encontram lá, que falta na cultura em que foram criados? Seguindo Saussure, um estudioso da linguistica,  é necessário considerar “que toda língua começa a penetrar em nosso espírito através do discurso” (SAUSSURE, In: ELG 2002, p. 105).Que força estranha é essa que faz com que eles amarrem bombas ao redor do corpo e se explodam? É possível entender e responder algumas dessas questóes? Com todo o esplendor das tecnologias de ponta, estamos impotentes diante da tragédia em Paris, Não só com a destituição do direito legítimo de ir e vir dos franceses e de nós turistas, mas, também, com a destruição do belo, das  obras de arte que fazem parte de um acervo que pertence há  séculos a toda humanidade, quebrado a marretadas. Certamente, não haverá saída enquanto as forças conjuntas que se unem para tentar “acabar com o mal”, não se debruçarem sobre a tradução dessa linguagem. Não há tanques, aviões super, mega potentes, drones. seals, que deem conta desse horror. dessa cultura homicida que permeia tradições seculares. Oito ou nove terroristas puseram o mundo em alerta vermelho.
O problema não está aí. O problema está no Homem.   Nas suas fragmentações e cisões, nas suas contradições, na  sua ânsia de poder,nas suas partes malditas e na incapacidade de governá-las . Isentemos Deus.                               
Já estava difícil para nós, brasileiros, lidar com a inversão da lógica dos loucos que nos governam. O mar de lama em Mariana é de um espanto simbólico impressionante. O Rio Doce ficou Amargo. É duro ver o arrastão provocado pela sujeira política e a miséria do povo inocente desaguando no mar. E é o próprio ser humano, com seu ódio permanente à diferença, sua imperfeição patética, suas ambições malditas e desmedidas, que subjaz a todas essas barbáries.

Angela Villela 
Psicanalista