terça-feira, 19 de agosto de 2014

SOROPOSITIVIDADES


Elas vêm de todos os lugares.
Da Pavuna, de Xerém, da Vila, de Raiz da Serra.
Vem de trem, de ônibus, a pé e chegam ao hospital em busca do resultado de um simples exame de rotina ou de um teste de gravidez.
Vem saber se carregam dentro de si uma vida.
Nesse exato ponto, são surpreendidas.
Junto à resposta positiva da gravidez, deparam-se com uma outra ordem de positividade:
“Amostra reagente”.
“HIV positivo”.
O chão escapa, o ar falta e os ruídos de uma morte anunciada se tornam pouco a pouco ensurdecedores. A cena tinge-se de vermelho.
Uma estética que transita entre o horror e a mais absoluta negação se instala.
Traição, contaminação, disseminação passam a ser as palavras de ordem, pois a maioria foi contaminada por parceiros na relação sexual. Ódio e revolta fazem contraponto com um estado de perplexidade, onde o corpo escapa ao controle e mostra sua própria vida.
A notícia do HIV é uma experiência convulsionária. O chamamento da morte produz uma espécie de despossessão corporal  e instala uma anatomia fantasmagórica. Esse corpo atravessado por um vírus e por agentes químicos de alto teor, vira um corpo-velocidade onde metamorfoses aceleradas estabelecem uma outra cartografia. Um excesso de concretude demarca um novo modo de existência.  A revelação que atinge o portador cristaliza a sua existência numa nova categoria – a de aidético.
O material, portanto, que se apresenta para a clínica é profundamente rico em questões.
A que sujeito pertence esse corpo estranho?O que pode a psicanálise face ao que parece escapar à teoria?
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Os desdobramentos dessas e de outras questões, estão nos Cadernos de Psicanálise__ "Sonhos", editado  pelo Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro em 2013, com o título "  O HIV e a Atualidade da Psicanálise".
Esses 20 anos de trabalho e convívio com mulheres / Aids, levaram à criação de um grupo chamado  "Soropositividades".Através dele,estas mulheres tem apoio psicológico e são, também, beneficiadas com outras modalidades de ajuda. Foram"adotadas" e recebem mensalmente cestas básicas e suporte financeiro.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

INCÊNDIOS


Fui ver “Incêndios”, a peça.
 Confesso que resisti durante um bom tempo, porque o filme havia me devastado. Coração e retinas foram atravessados. Inexoravelmente.                                             
 Assim sendo, era como se eu tivesse medo de ver “profanada“ a grandeza da obra que  havia testemunhado , uma vez que não concebia como aquilo caberia na cena teatral, embora soubesse que essa era sua origem. 
Até que recebi um convite de uma amiga e fui ao  “Poeira”, atraída,  principalmente, por uma  Presença : Marieta Severo. Queria ver sua Nawal.                           
Segundo êxtase. Saio do teatro com um sentimento de urgência. Preciso ler, escrever, pensar, colocar em palavras essa experiência sensorial deslumbrante. Corpo e alma foram atingidos, esmagados outra vez e agora, de uma forma mais próxima. O palco é diferente da tela, estamos dentro da arena, somos incluídos na cena. Somos um elemento a mais. O desafio é encontrar as palavras e tornar traduzível o que é da ordem do indizível. Vi-me diante de uma narrativa em tom preciso, face às intensidades pulsionais que modulam a cena, como se o pesadelo, num recorte sinuoso, não só cortasse a carne, mas integrasse e retratasse a fantasmagoria dos detalhes, o puro insólito ao mesmo tempo atrelado a um real chocante .                   
O texto, no caso uma história advinda de uma outra cultura, precisa ser decodificado através de uma gangorra que vai ao passado e volta ao presente, um tipo de código alienado aos elementos que compõem a aridez, a estrangeridade que nos atinge a retina, forçando-nos a uma tentativa de discernimento e compreensão dessa outra língua que nos invade.Como na psicanálise, que está destinada a escutar o que não se diz, a trabalhar nas bordas para reintegrar as partes esfaceladas a um quase-todo, já que é impossível significar tudo, pois existem zonas sombrias não simbolizáveis.                               
O que fazer quando a mente está diante da precariedade da palavra?  “Incêndios” traz vários enigmas, sendo que o principal, o que mais me instiga, é apontado por Freud como imanente ao 
ser: a busca das origens. Esse mistério se atualiza nos horrores das guerras insanas e nas barbáries que elas produzem. O ser humano se perde  de si mesmo, de seus valores civilizatórios , aniquila-se e ao outro também, cavando um poço de memórias inextinguíveis. O que vemos hoje na Síria aconteceu no Líbano de Nawal. Imagens de corpos, vestígios de um emaranhado de objetos. Rastros de ódio e perda de referências.                 
Para Jean Pierre Vernant, no meio dessas perdas  e desse caos, “há um ponto originário, mítico, mágico ou sagrado” que sobrevive. Um ponto primordial chamado "Ur", prefixo alemão que significa aquilo que diz respeito à necessidade do ser humano  de saber sobre sua origem. Uma busca pelo “ur-teil, traços identificatórios originários" que definem o sujeito em sua singularidade e fazem com que ele se reconheça como tendo vindo de um lugar, de um outro ser, o que lhe ajudará a dizer quem é e para onde vai. Entretanto, as mesmas forças que entremeiam as origens saudáveis e fundantes, referem-se a um outro aspecto identitário  que contem, potencialmente, a possibilidade de um encontro com a rejeição com aquilo que é experimentado como estrangeiro e inimigo. Simon, o irmão gêmeo que sobreviveu às custas da humanidade que há na desumanidade, carrega essa faceta do horror na alma e no corpo. A  decisão de Jeanne, sua irmã, ao contrário, de percorrer os caminhos de Nawal ,sua mãe, é desencadeada assim que os nós do destino começam a se desenrolar. Ela não fecha  a multiplicidade de interpretações que haviam em torno do silêncio da mãe, como Simon. Jeanne quer saber o que lhe foi destinado através da história dessa mãe. Ela quer as origens dos fatos. Ela é a filha que quer entender o que há além do visível. Nawal é o enigma a ser decifrado porque é a origem, a fonte do mistério. E esse é um dos pontos mais notáveis dessa tragédia engendrada por Wajdi Mouawad e o que mais me tocou. Os filhos jamais conhecem de fato a história de seus pais. O que estes viveram faz parte de um tempo que só pode ser acessado através de narrativas distorcidas. Por trás de um silêncio pode haver um pacto com o horror, pode haver a brutalidade e a animalidade que habita todo ser humano. Freud sabia disso como poucos e por essa razão dedicou-se às pulsões de morte.Existem frases na peça que definem o risco que é falar e o risco que é silenciar:             
”A infância é uma faca enfiada na garganta”.                                      
“Existem histórias que não são para serem reveladas e sim descobertas”.                                     
E porque ? Porque elas obrigam aos trilhamentos, ao tempo, ao espaço interno e ao conhecimento mais profundo do próximo e de si mesmo, fazendo com que este saber traga outros sentidos à existência, outros ângulos e interpretações. Wajdi Mowawad nos leva de volta ao trágico e ao belo que os gregos nos deixaram como herança. E nos faz ler, escrever, e pensar. Muito. Como Nawal.                                   Gratíssima a todo esse elenco espetacular e à direção soberba de Aderbal Freire Filho, pela experiência inesquecível de assistir ao que pode haver de melhor num palco: a VIDA em sua dimensão mais profunda. E só quem a viveu, como provavelmente é o caso de Marieta Severo, pode ser Nawal.

Comentário
:Cara Angela obrigado por nos revelar mais ainda aquilo que procuramos trazer a cada noite para a cena no encontro com o público. Um grande abraço

Atenciosamente,

Isaac Bernat
Ator da peça











                                                                                                                                                                                                                                                          



sábado, 15 de fevereiro de 2014

PARA GUILHERME FIUZA


UFA!!! Finalmente alguém vai nas vísceras.Já ouvi de algumas pessoas que você é "reaça " demais e sempre detectei algo diferente no que você escreve. Bem para além do que um simples "reaça" faria, porque você fala de um outro lugar, pulsional, sem mais rodeios e atinge em cheio o alvo, detonando esse blá-blá-blá que é infinitamente aquém da gravidade dos fatos. Respirar está difícil nessa cidade, nesse país e não é só pelo calor avassalador. Há algo de muito podre no ar, que nos faz sentir um peso imenso no viver cotidiano. Ele, o ar, custa a passar dentro do peito E hoje, sábado 15/ 2. quando li sua crônica respirei  fundo, porque você produziu a síntese. Exagerada, dirão alguns?  No ponto, dirão outros. Sabe aquela bombinha que asmático usa para fazer o ar passar? Pois, é....você foi "a" bombinha" no meio de tantos rojões de indignação que atravessam corações, cabeças e mentes nesse momento absolutamente sombrio que estamos passando. Nem o sol infernal consegue disfarçar. 

Gratíssima.