Fui ver
“Incêndios”, a peça.
Confesso que resisti durante um bom tempo,
porque o filme havia me devastado. Coração e retinas foram atravessados.
Inexoravelmente.
Assim sendo, era como se eu tivesse medo de
ver “profanada“ a grandeza da obra que
havia testemunhado , uma vez que não concebia como aquilo caberia na
cena teatral, embora soubesse que essa era sua origem.
Até
que recebi um convite de uma amiga e fui ao
“Poeira”, atraída,
principalmente, por uma Presença
: Marieta Severo. Queria ver sua Nawal.
Segundo êxtase. Saio do teatro com um
sentimento de urgência. Preciso ler, escrever, pensar, colocar em palavras essa
experiência sensorial deslumbrante. Corpo e alma foram atingidos, esmagados
outra vez e agora, de uma forma mais próxima. O palco é diferente da tela,
estamos dentro da arena, somos incluídos na cena. Somos um elemento a mais. O
desafio é encontrar as palavras e tornar traduzível o que é da ordem do
indizível. Vi-me diante de uma narrativa em tom preciso, face às intensidades
pulsionais que modulam a cena, como se o pesadelo, num recorte sinuoso, não só
cortasse a carne, mas integrasse e retratasse a fantasmagoria dos detalhes, o
puro insólito ao mesmo tempo atrelado a um real chocante .
O
texto, no caso uma história advinda de uma outra cultura, precisa ser
decodificado através de uma gangorra que vai ao passado e volta ao presente, um
tipo de código alienado aos
elementos que compõem a aridez, a estrangeridade que nos atinge a retina,
forçando-nos a uma tentativa de discernimento e compreensão dessa outra língua
que nos invade.Como na psicanálise, que está destinada a escutar o que não se diz,
a trabalhar nas bordas para reintegrar as partes esfaceladas a um quase-todo,
já que é impossível significar tudo, pois existem zonas sombrias não
simbolizáveis.
O
que fazer quando a mente está diante da precariedade da palavra? “Incêndios” traz vários enigmas, sendo que o principal, o que mais me
instiga, é apontado por Freud como imanente ao
ser: a busca das origens. Esse mistério se atualiza nos horrores das guerras insanas e nas barbáries que elas produzem. O ser humano se perde de si mesmo, de seus valores civilizatórios , aniquila-se e ao outro também, cavando um poço de memórias inextinguíveis. O que vemos hoje na Síria aconteceu no Líbano de Nawal. Imagens de corpos, vestígios de um emaranhado de objetos. Rastros de ódio e perda de referências.
ser: a busca das origens. Esse mistério se atualiza nos horrores das guerras insanas e nas barbáries que elas produzem. O ser humano se perde de si mesmo, de seus valores civilizatórios , aniquila-se e ao outro também, cavando um poço de memórias inextinguíveis. O que vemos hoje na Síria aconteceu no Líbano de Nawal. Imagens de corpos, vestígios de um emaranhado de objetos. Rastros de ódio e perda de referências.
Para
Jean Pierre Vernant, no meio dessas perdas
e desse caos, “há um ponto originário, mítico, mágico ou sagrado” que
sobrevive. Um ponto primordial chamado "Ur", prefixo alemão que significa aquilo que diz respeito à necessidade do ser humano de saber sobre sua origem. Uma busca pelo
“ur-teil, traços identificatórios originários" que definem o sujeito em sua
singularidade e fazem com que ele se reconheça como tendo vindo de um lugar, de
um outro ser, o que lhe ajudará a dizer quem é e para onde vai. Entretanto, as
mesmas forças que entremeiam as origens saudáveis e fundantes,
referem-se a um outro aspecto identitário que
contem, potencialmente, a possibilidade de um encontro com a rejeição com
aquilo que é experimentado como estrangeiro e inimigo. Simon, o irmão gêmeo que
sobreviveu às custas da humanidade que há na desumanidade, carrega essa faceta
do horror na alma e no corpo. A decisão
de Jeanne, sua irmã, ao contrário, de percorrer os caminhos de Nawal ,sua mãe,
é desencadeada assim que os nós do destino começam a se desenrolar. Ela não fecha a multiplicidade de interpretações que haviam
em torno do silêncio da mãe, como Simon. Jeanne quer saber o que lhe foi
destinado através da história dessa mãe. Ela quer as origens dos fatos. Ela é a
filha que quer entender o que há além do visível. Nawal é o enigma a ser
decifrado porque é a origem, a fonte do mistério. E esse é um dos pontos mais
notáveis dessa tragédia engendrada por Wajdi Mouawad e o que mais me tocou. Os
filhos jamais conhecem de fato a história de seus pais. O que estes viveram faz
parte de um tempo que só pode ser acessado através de narrativas distorcidas.
Por trás de um silêncio pode haver um pacto com o horror, pode haver a
brutalidade e a animalidade que habita todo ser humano. Freud sabia disso como
poucos e por essa razão dedicou-se às
pulsões de morte.Existem
frases na peça que definem o risco que é falar e o risco que é
silenciar:
”A infância é
uma faca enfiada na garganta”.
“Existem
histórias que não são para serem reveladas e sim descobertas”.
E
porque ? Porque elas obrigam aos trilhamentos, ao tempo, ao espaço interno e ao
conhecimento mais profundo do próximo e de si mesmo, fazendo com que este saber
traga outros sentidos à existência, outros ângulos e interpretações. Wajdi
Mowawad nos leva de volta ao trágico e ao belo que os gregos nos deixaram como
herança. E nos faz ler, escrever, e pensar. Muito. Como Nawal. Gratíssima
a todo esse elenco espetacular e à direção soberba de Aderbal Freire Filho,
pela experiência inesquecível de assistir ao que pode haver de melhor num
palco: a VIDA em sua dimensão mais profunda. E só quem a viveu, como
provavelmente é o caso de Marieta Severo, pode ser Nawal.
Atenciosamente,
Isaac Bernat
Comentário
:Cara Angela obrigado por nos revelar mais ainda aquilo que procuramos trazer a cada noite para a cena no encontro com o público. Um grande abraço
Atenciosamente,
Isaac Bernat
Ator da peça