quarta-feira, 7 de maio de 2014

INCÊNDIOS


Fui ver “Incêndios”, a peça.
 Confesso que resisti durante um bom tempo, porque o filme havia me devastado. Coração e retinas foram atravessados. Inexoravelmente.                                             
 Assim sendo, era como se eu tivesse medo de ver “profanada“ a grandeza da obra que  havia testemunhado , uma vez que não concebia como aquilo caberia na cena teatral, embora soubesse que essa era sua origem. 
Até que recebi um convite de uma amiga e fui ao  “Poeira”, atraída,  principalmente, por uma  Presença : Marieta Severo. Queria ver sua Nawal.                           
Segundo êxtase. Saio do teatro com um sentimento de urgência. Preciso ler, escrever, pensar, colocar em palavras essa experiência sensorial deslumbrante. Corpo e alma foram atingidos, esmagados outra vez e agora, de uma forma mais próxima. O palco é diferente da tela, estamos dentro da arena, somos incluídos na cena. Somos um elemento a mais. O desafio é encontrar as palavras e tornar traduzível o que é da ordem do indizível. Vi-me diante de uma narrativa em tom preciso, face às intensidades pulsionais que modulam a cena, como se o pesadelo, num recorte sinuoso, não só cortasse a carne, mas integrasse e retratasse a fantasmagoria dos detalhes, o puro insólito ao mesmo tempo atrelado a um real chocante .                   
O texto, no caso uma história advinda de uma outra cultura, precisa ser decodificado através de uma gangorra que vai ao passado e volta ao presente, um tipo de código alienado aos elementos que compõem a aridez, a estrangeridade que nos atinge a retina, forçando-nos a uma tentativa de discernimento e compreensão dessa outra língua que nos invade.Como na psicanálise, que está destinada a escutar o que não se diz, a trabalhar nas bordas para reintegrar as partes esfaceladas a um quase-todo, já que é impossível significar tudo, pois existem zonas sombrias não simbolizáveis.                               
O que fazer quando a mente está diante da precariedade da palavra?  “Incêndios” traz vários enigmas, sendo que o principal, o que mais me instiga, é apontado por Freud como imanente ao 
ser: a busca das origens. Esse mistério se atualiza nos horrores das guerras insanas e nas barbáries que elas produzem. O ser humano se perde  de si mesmo, de seus valores civilizatórios , aniquila-se e ao outro também, cavando um poço de memórias inextinguíveis. O que vemos hoje na Síria aconteceu no Líbano de Nawal. Imagens de corpos, vestígios de um emaranhado de objetos. Rastros de ódio e perda de referências.                 
Para Jean Pierre Vernant, no meio dessas perdas  e desse caos, “há um ponto originário, mítico, mágico ou sagrado” que sobrevive. Um ponto primordial chamado "Ur", prefixo alemão que significa aquilo que diz respeito à necessidade do ser humano  de saber sobre sua origem. Uma busca pelo “ur-teil, traços identificatórios originários" que definem o sujeito em sua singularidade e fazem com que ele se reconheça como tendo vindo de um lugar, de um outro ser, o que lhe ajudará a dizer quem é e para onde vai. Entretanto, as mesmas forças que entremeiam as origens saudáveis e fundantes, referem-se a um outro aspecto identitário  que contem, potencialmente, a possibilidade de um encontro com a rejeição com aquilo que é experimentado como estrangeiro e inimigo. Simon, o irmão gêmeo que sobreviveu às custas da humanidade que há na desumanidade, carrega essa faceta do horror na alma e no corpo. A  decisão de Jeanne, sua irmã, ao contrário, de percorrer os caminhos de Nawal ,sua mãe, é desencadeada assim que os nós do destino começam a se desenrolar. Ela não fecha  a multiplicidade de interpretações que haviam em torno do silêncio da mãe, como Simon. Jeanne quer saber o que lhe foi destinado através da história dessa mãe. Ela quer as origens dos fatos. Ela é a filha que quer entender o que há além do visível. Nawal é o enigma a ser decifrado porque é a origem, a fonte do mistério. E esse é um dos pontos mais notáveis dessa tragédia engendrada por Wajdi Mouawad e o que mais me tocou. Os filhos jamais conhecem de fato a história de seus pais. O que estes viveram faz parte de um tempo que só pode ser acessado através de narrativas distorcidas. Por trás de um silêncio pode haver um pacto com o horror, pode haver a brutalidade e a animalidade que habita todo ser humano. Freud sabia disso como poucos e por essa razão dedicou-se às pulsões de morte.Existem frases na peça que definem o risco que é falar e o risco que é silenciar:             
”A infância é uma faca enfiada na garganta”.                                      
“Existem histórias que não são para serem reveladas e sim descobertas”.                                     
E porque ? Porque elas obrigam aos trilhamentos, ao tempo, ao espaço interno e ao conhecimento mais profundo do próximo e de si mesmo, fazendo com que este saber traga outros sentidos à existência, outros ângulos e interpretações. Wajdi Mowawad nos leva de volta ao trágico e ao belo que os gregos nos deixaram como herança. E nos faz ler, escrever, e pensar. Muito. Como Nawal.                                   Gratíssima a todo esse elenco espetacular e à direção soberba de Aderbal Freire Filho, pela experiência inesquecível de assistir ao que pode haver de melhor num palco: a VIDA em sua dimensão mais profunda. E só quem a viveu, como provavelmente é o caso de Marieta Severo, pode ser Nawal.

Comentário
:Cara Angela obrigado por nos revelar mais ainda aquilo que procuramos trazer a cada noite para a cena no encontro com o público. Um grande abraço

Atenciosamente,

Isaac Bernat
Ator da peça