terça-feira, 25 de outubro de 2016

MEU REI

Entre todas as artes. inegavelmente, a que mais me captura é o cinema. Ver um filme é quase um ato de devoção que nutre minha alma e meu espirito. Saio alimentada, saciada, revigorada pela experiência poética que mexe com minha inteligência e minhas paixões. É quase um culto essa abstração da vida real que o cinema propicia, pois há algo sempre mágico, seja na história ou na narrativa, na fotografia ou nas imagens , nas interpretações ou nos cenários. Esse foi o caso de "MEU REI", filme francês visto neste final de semana, que me siderou . Dirigido por uma mulher e asfixiantemente interpretado por Vincent Cassel e Emmanuelle Bercot, que arrebatou a Palma de Ouro do Festival de Cannes/2016, esse poderia ser, apenas, mais um daqueles inúmeros filmes que falam da relação conturbada de um casal. Mas não. Ele chega muito perto dos relatos da vida cotidiana de um casamento inundado de intensidades à deriva. Os personagens parecem saídos das salas dos consultórios psicanalíticos e invadem a tela cinematográfica, num percurso contrário à genialidade de Woody Allen na " Rosa Púrpura do Cairo", onde o ator sai da tela e vem dialogar com a espectadora.Em "MEU REI" impossível ficar de fora, alienado.
As neuroses e overdoses de uma relação passional assaltam nossos sentidos e nos revelam muito do humano, demasiadamente humano. Existem encontros que se definem por uma frase do personagem de Vincent : "Você quer me deixar pela mesma razão que te atraiu em mim.",  diz Georgio  para sua mulher Tony. Ou seja, aquilo mesmo que atrai é o que inviabiliza. Há algo entre os dois que é irredutivel. Atração fatal, atração mortal. Vida pulsante, morte espreitante. Construção e destruição. Uma gangorra incessante, oscilante.
Georgio é o protótipo perfeito de um sedutor irresistível aos olhos de uma mulher, no caso Tony, vinda de uma relação que arrasou sua auto-estima. Ele é um caçador com pontaria certeira e ela a presa perfeita. Aliança vigorosa de dificil "desfazimento", como diria o poeta Manoel de Barros.
A diretora conduz de forma brilhante esse quebra cabeças que vai se engendrando , a medida em que Tony sofre um "acidente" e é obrigada a parar. Nessa parada obrigatória que o inconsciente lhe impõe, ela vai fazendo uma retrospectiva , uma refilmagem por outro ângulo dessa história: o encontro, a captura, a loucura, o fascinio reciproco, o auge e a queda progressiva.
Mais uma citação do filme: Georgio só consegue viver em forma de um eletrocardiograma de um paciente vital. O eletro linear de um paciente que está morrendo , ou seja, bip...bip... bip não lhe cabe. 
Os diálogos e a rapidez com que ele se movimenta nos inquietam na cadeira, nos fazem até rir, tal a velocidade , o egoísmo, a arrogância com que ele muda de posição. Tony vive num mundo interno , onde os rítmos são outros e por mais que ela se esforce, não há como acompanhar a pulsionalidade violenta do parceiro.
Muitos casais não se dão conta , mas esse é um fator importantíssimo num relacionamento a dois: os rítmos de um jamais vâo ser exatamente o do outro. E quando falo de rítmo , falo da forma mais abrangente possível. Desde a fruição de uma comida à um  orgasmo. Esse é um grande desafio num casamento, a sensibilidade e a percepção do tempo de cada um. Giorgio é um narcisista-modelo e Tony , uma histérica exemplar, que corre desesperadamente atrás do prejuízo , na tentativa de salvar o que talvez, sob determinados aspectos, jamais tenha salvação. Eles são  adictos , a relação tem um caráter viciante e daí vem um dos principais recados da diretora Maiwenn: existem temporalidades conciliáveis e outras inconciliáveis. Não existe negociação possível, mesmo que o amor seja profundo demais. Ele não dá conta de tudo o que se passa entre dois seres que sustentam suas diferenças e suas visões de mundo.
Só a vida, a maturidade, a repetição do mesmo e uma insistência permanente de suportar as patologias recíprocas, é que podem parir a sustentabilidade de uma união verdadeira e para sempre instável.
A "estabilidade"só se encontra na Revista Caras ou nos relatos para a platéia.. Aliás, graças a Deus .O fato de oscilarmos permanentemente, em graus diversos, é óbvio, garante a nossa humanidade. Como bem diz Caetano :
"A vida é real e de viés"

Angela Villela
25/102016




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