quarta-feira, 22 de agosto de 2012

ÍNTEGRA DA ENTREVISTA AO JORNAL O GLOBO

1-A que se refere exatamente esse conceito de “gordura psíquica”?
Ele é um desdobramento da noção de trauma, já que toda e qualquer situação traumática diz respeito a um excesso, seja de dor ou de qualquer transbordamento, que se transforma num outro tipo de gordura que o psiquismo não tem como dar conta. Nem o corpo. Esses excessos dizem respeito àquilo que sobra e que precisa ser “gasto”, pois gera angústias, medos difusos e sintomas das mais diversas ordens, tais como síndromes do pânico, fobias, anorexias, bulimias, compulsões, etc..

2-Qual o papel da pós–modernidade nesse contexto?
As tensões e o mal-estar gerados pelas demandas desse estágio da cultura, onde as práticas estéticas e as pressões sociais nos fazem acreditar que não existe vida fora do mercado, são os principais fatores do que Julia Kristeva, psicanalista francesa, chamou de “As novas doenças da alma”. A peregrinação em busca das últimas novidades para se ter um corpo perfeito, por exemplo, paradoxalmente faz com que cada vez mais surjam na clínica, corpos extremamente adoecidos. O nome clássico disso, na contemporaneidade, é stress.

3-A mídia é muito demonizada por essas tensões. Onde ela entra nisso?
Baudrillard disse que substituímos o “drama da alienação”de Marx”pelo “êxtase da comunicação”. Que a compulsão pelos contatos virou um espetáculo, um signo emblemático de mercadoria e a propaganda, como estilo de vida, dá ilusão de domínio do vazio existencial que caracteriza essa era. Os meios de comunicação são as telas de controle. Os movimentos de liberação dos anos sessenta, por razões comerciais, perderam originalmente suas implicações revolucionárias.Ganharam um caráter opressor e decadente.O fenômeno das “periguetes” é a prova mais contundente do que é ser liberada hoje.

4- Mas os avanços científicos e tecnológicos não trouxeram outra ordem de ganhos?
Claro que sim, mas parece que a ciência e a técnica, sob determinados aspectos, esqueceram o homem. Nossos corpos não foram preparados para dar conta de tantos estímulos e percepções. Paga-se um preço muito alto para acompanhar esse excesso de ofertas. Confesso que às vezes fico confusa e exausta só de olhar a quantidade de coisas que os jornais indicam no final de semana. A sensação é sempre de que perderei muita coisa e ainda bem que já me dispus a perder há muito tempo. Há uma possibilidade de expansão psíquica com essa quantidade de ofertas no mercado? Óbvio que sim. Mas perde-se em qualidade de vida. É preciso conseguir discernir o que realmente cabe na particularidade de cada um, pois a tendência é de massificação.

5-Então haveria uma possibilidade muito maior de instabilidade
emocional diante desses excessos?
Eu diria que há uma dificuldade muito grande de descolamento dessa hegemonia do “você tem que”. Esses códigos , essas exigências da exterioridade, produzem uma precariedade na formação da interioridade. Que ser você realmente quer ser? Os olhos estão todos voltados e capturados para o batom que a atriz da novela usa e que está em todas as bancas, para as dietas que fazem você perder 10 kg em 8 dias, para o salto que miraculosamente sustenta um corpo, para a bolsa do momento e que custa R$4.200,00, mas que você precisa ter, porque esses pequenos detalhes lhe darão uma ilusão de pertencimento. Eu tenho, logo eu sou. A exclusão é ligada à rejeição, à miséria existencial.
6- O que seria essa miséria existencial? 
 Essa busca de reconhecimento através do excesso de objetos, já é sintoma visível de um desasseguramento profundo existencial, de uma angústia decorrente da inconsistência desses preenchimentos. Uma bolsa não vai suprir um vazio que é de outra ordem. Um botox vai apena aplacar a angústia da passagem do tempo, uma lipo não vai acabar com uma insegurança que é fruto de vivências muito mais profundas. E aí as pessoas saem “gastando” para anestesiar o que diz respeito aos incômodos de não se sentirem à altura dessa forma maníaca que o mercado impõe e que é extremamente bem sucedida, pois é contínua. Cristoph Türcke, filósofo alemão que escreveu “Sociedade Excitada”, diz que essa compulsão está de tal forma estabelecida, que uma vez posta em movimento, não pode mais parar. Sua vitória se caracteriza pelo fato de que condena as pessoas a quererem sempre mais uma vez e sempre mais rapidamente.

7- Mas existem ganhos, é lógico, com esse avanços todos. Ou não?
Claro que sim. Estão aí os espelhos que refletem imagens mais apaziguadoras. E a vaidade faz parte da constituição do sujeito Mas o que se discute aqui são os excessos diante dessas novas tecnologias e a distinção entre ser e ter, entre vaidade e cuidado de si, entre o real e o ideal. Freud fez tudo o que pode para mostrar o quanto somos apaixonados pelo disfarce, pelo fantasiar-se de outro e que exibimos nossa maior inventividade quando se trata de ocultar quem somos e aquilo que não funciona bem em nós. Se por um lado todo esse aparato estético esconde o “feio”, por outro esconde, também, o que nos faz sofrer. Entre a imagem e o real, a distância às vezes se torna difícil de ser percorrida, a ponto de caber a pergunta: afinal, quem sofre de que? As pessoas se perdem de si mesmas, privilegiando a superfície, a imagem.

8-Qual a relação que a imagem tem com o poder?
Pois é, depois de tantas lutas para reverter papéis, essa revolução parece estar condenada ao retrocesso, porque ao abrir mão das transformações e práticas políticas significativas que aconteceram graças aos deslocamentos de posições e movimentos produzidos pelo feminismo, essa questão de suposto poder ligada à estética, desperdiça inúmeras conquistas. Ela escraviza e não emancipa verdadeiramente. Pois o que é ser poderosa hoje? O que um salto alto sustenta? O que um vestidinho curto e colante dá conta? Na primeira rejeição ou abandono, queda à vista. Eles não dão conta das inseguranças que assombram as profundezas da alma, das paranóias que se apresentam diante dos fatos complexos da vida. É uma cultura de superfície que não acolhe o fracasso.

9-De que forma esse processo foi se desdobrando? 
 Na ânsia de igualdade de direitos, muitas mulheres se perderam de sua feminilidade e da sua real potência, na medida em que estabeleceram semelhanças com o discurso masculino, tornando-se extremamente fálicas. A questão não passa pelo salto ou o batom vermelho mas por uma outra forma de sustentação que diz respeito ao discurso, a uma mudança de parâmetros, uma verdadeira revolução do pensamento na construção de outra ordem de conhecimento de si, de sua fraquezas e fragilidades e paralelamente, de sua força e potência. Ao invés de uma posição de superfície, competitiva, a negociação de território, a flexibilidade, a delicadeza, uma diferença sutil que estabeleça um novo interesse para o mercado, através da percepção e da sensibilidade.

10-- Que tipo de distorções isso produziu?
Se por vários aspectos tivemos evoluções, por outros temos sido espectadores de degradações. Ao invés de virarem sujeitos de seu próprio discurso, certas mulheres caíram no engodo de permanecerem, apenas, nos velhos lugares de objetos de consumo. Silicones e peitos turbinados viraram sinônimos de “segurança”, o que diga-se de passagem, não só empobreceu as relações afetivas, como, também, produziu essa distorção entre poder e potência, o que acabou causando um distanciamento incomensurável, um abismo, entre mulheres e homens.

11-Quais as repercussões mais visiveis nas relações amorosas? Ndamentais que deixaram um grande vazio, não somente em suas identidades, mas também em suas trocas afetivas, sócio- políticas e existenciais. Ouço no consultório muitos homens que se dizem perdidos, confusos sem saberem como se colocar diante de uma mulher. Está difícil para eles, também, afirmar sua masculinidade.

12-E os sintomas que mais se apresentam na clínica, relativos à essas questões, quais são?
Bom, eu diria que a solidão, a paranóia e a depressão formam a comissão de frente disso que nomeamos como “gorduras psíquicas” Frustrações e decepções fazem parte desse contexto social desestabilizador, na medida em que as pessoas se sentem sempre aquém dos parâmetros exigidos e tem, portanto, uma auto estima baixíssima. O trauma é uma constante na contemporaneidade. Presenciamos algumas saídas mais insistentes: ou há um isolamento para não se machucar mais ainda, ou um desespero pela visibilidade, ou as modalidades de anestesia, que apagam temporariamente a dor. Mas isso não se sustenta

13-O que é ter um corpo sustentável? 
Como foi mencionado anteriormente, há um excesso de preocupação em ter um corpo com “tudo em cima”. Liftings, lipo-esculturas, peles maravilhosas, o que de fato melhora a auto estima.Pois há que se perguntar? Porque não? A questão é que isso cria uma ilusão de onipotência, enquanto ficamos impotentes diante das catástrofes existenciais. Para se fazer frente a elas, precisamos de um a outro tipo de sustentação que vem de diferentes lugares. Uma auto-estima consistente se constrói a partir da infância, da história do sujeito e de que como ele passa por ela. Freud falava em “séries complementares”, que são o conjunto de fatores que formam o caráter e a subjetividade de um ser. Essa imagem de si mesmo é vital para que sobrevivamos aos desabamentos existenciais a que estamos sujeitos. É preciso um narcisismo sustentável e não referido somente à vaidade.Temos que fazer valer nossas pulsões conservadoras e vitais.

14- Isso quer dizer que a saúde do aparelho psíquico é necessária para que a vida biológica exista? 
Certamente. Uma depressão profunda acaba com todas as suas defesas imunológicas, assim como uma paixão pode te levar ao paraíso (ou ao inferno) Nesse sentido, eu diria que não basta “malhar o corpo”. É preciso cuidar da alma. E a maior “malhação” nesse sentido é conseguirmos encontrar um mínimo de equilíbrio entre as forças que nos constituem: somos construtivos e destrutivos, vitais e mortais, benditos e malditos.Somos o que somos, repetitivos, mas também criativos a partir dessas forças que estão em permanente ação dentro de nós.

15-As imagens do corpo visto prevalecem sobre as imagens do corpo vivido?
As imagens de determinadas sensações vividas são relegadas e recalcadas no silêncio do inconsciente e é nesse sentido que a psicanálise tem sua grande eficácia. É num processo analítico que podemos acessar inúmeras dessas sensações e também as fantasias que constituem o que o espelho espelha. Por isso, nós, psicanalistas, associamos permanentemente nosso ofício à arte, que também é tão reveladora do inconsciente, desses lugares de desconhecimento que podem vir a se tornar conscientes e desfazer/refazer esse corpo visto, dando-lhe novas formas e configurações.essas tentativas de igualdade, elas se perderam de características fun

Angela Villela

Um comentário:

Anônimo disse...

Angela amiga seu blog está demais!!!!!Adorei vc flutua do real para o teórico com uma naturalidade incrível,além de falar como em GORDURAS PSÍQUICAS tema tão importante de forma irreprensível e competente.Bjss Regina carneiro