terça-feira, 5 de junho de 2012

A PARTE MALDITA QUE NOS HABITA

“Não me apavoram os vastos espaços abertos entre estrelas, além da raça humana. Vem de dentro de mim, mais perto, esse temor a meu próprio deserto. “( Robert Frost)

Apesar de vivermos num país que hoje passa por uma espécie de refluxo econômico semelhante ao que chamamos de “idade de ouro” (até quando?), é impressionante como por outro lado, essa época está tão marcada pela palavra destrutividade. Há poucos meses atrás ficamos chocados com o desabamento dos prédios no centro da cidade, cena assustadoramente simbólica de um tempo pleno de transgressões e queda de valores. As janelas irregularmente colocadas e as vigas desestruturadas , produziram um vazio politicamente obsceno, onde, para variar, “a culpa foi dos outros”. Terremoto na Itália e também aqui, onde os valores caem por terra. Tudo que era sólido está se desmanchando no ar. O mundo não parece estar acabando e sim despencando... Diariamente, somos espectadores de movimentos que nos tiram da superfície e nos fazem mergulhar em abismos silenciosos, em obscuridades e contradições que constituem uma estranha espécie de humanidade que surge por trás das máscaras da perversão . Pela mídia, a tragédia humana torna-se visível em escala mundial, misturando a “diversão compulsiva à publicidade compulsória”, expressão muito bem usada numa crônica recente de Francisco Bosco. As compulsões grassam, na variedade de suas extensões e fazem parte do nosso cotidiano, revelando o embate permanente e ambíguo entre as forças que nos vinculam à vida e às partes malditas que nos habitam. . Essa ambiguidade que caracteriza nossas políticas e nossas escolhas, faz com que a perversão seja um “fenômeno flexível”, que se encaixa perfeitamente em seu lema ” eu sei, mas mesmo assim...”. ou como bem disse Hannah Arendt, na simplificação que leva à banalidade do mal. E pior ainda é ter que engolir a racionalidade que reveste os discursos a respeito dessas banalizações. Nesse sentido, são inúmeras as montagens perversas que nos remetem ao vasto campo das compulsões, onde não existem sujeitos e sim assujeitados, onde não existe autonomia e sim a obediência à imperativos categóricos. Lá dentro, na obscuridade de cada um de nós, há uma voz que diz: faça! Quem comanda as ações é o inconsciente, cuja linguagem não atende aos comandos da razão. Ele é movido por outras demandas, que vem de lugares múltiplos. São forças interagindo, tomando formas expressivas de intensidade visceral, que expressam potências em virtualidade. De que adianta, por exemplo, dizer a um fumante que o cigarro faz mal e a um alcólatra que o excesso de álcool pode levá-lo a uma cirrose? Da mesma forma, será possível dizer a uma mulher “rodriguianamente” apaixonada, que aquele homem não presta? E vice versa? Que efeitos uma fala pode surtir em quem precisa comprar aquele sapatinho, apesar de saber que ele, provavelmente, não vai caber num armário que já abriga uns trezentos pares? E a um jogador famoso, que seus sucessivos desvios de conduta vão transformá-lo num fracassado? De que adianta dizer a alguém que sofre de anorexia, que é preciso comer, quando o próprio corpo não exerce a função de colocar limites entre o dentro e o fora?
Do político corrupto, que rouba dinheiro de escolas e hospitais, à cultura da drogadição, o ilegal caminha ao lado do legal. O alcolismo, por exemplo, não se apresenta como fora da lei, mas é tão ou mais comprometedor do que a maconha, assim como comprometidos são “suas excelências” quando falam do lugar próprio da lei e os juízes desviantes, que encobertos pela toga criam exceções à lei dentro da lei. A perversão é o avesso do bem ético, já que o ato nega a norma. Daí a idéia de desvio.
E nós, o que fazemos de nossas partes malditas? Quem se atreve a reconhecê-las?
Cada um de nós possui suas parcialidades sombrias. Somos sádicos e exibicionistas de vez em quando, masoquistas e voyeristas um outro tanto. Dentro de nós moram todas as possibilidades e intenções, disfarçadas ou não. Somos humanos, demasiadamente humanos, como dizia Nietzsche. Quantas vezes colocamos o outro em posições ordinárias e incômodas? E quantas vezes exercemos os vários outros que habitam em nós e que se satisfazem com pequenas ou grandes transgressões? O que dizer da inveja acompanhada da crueldade, que permeia muitas vezes as relações? Na realidade, em termos mais amplos, qual sociedade não possui estéticas pornográficas, em suas dissociações e transgressões políticas? Existe exercício de poder fora da perversão?
Evidentemente, há graus que diferenciam patologias graves de um simples sintoma e está aí a psicanálise para diferenciar e ajudar quem cai nos excessos. Pois, na verdade, a questão maldita que não cala é psicanalítica: quem nunca cometeu um delito que atire a primeira pedra nessa tela-espelho. E nesse desafio não está implícita uma apologia da perversão, mas está explícita uma provocação à interiorização. Chega de culpar os outros....

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