terça-feira, 19 de junho de 2012

AOS PEDAÇOS

Há alguns dias atrás, escrevi nesse blog uma introdução ao tema do amor, abordando a questão da experiência erótica. Ali coloquei a idéia de transitar em meio à essa temática e suas extensões, como o ciúme, as perdas, o luto, etc...Sim, porque para além da alegria de amar, existe a dor. Mal poderia eu imaginar, que na mesma semana os meios de comunicação rasgariam nossos olhos com uma lâmina, assim como Bunûel o fez naquela obra-prima chamada “ O Cão Andaluz”, considerado um dos filmes mais chocantes de todos os tempos e que gerou protestos e indignação onde foi exibido. Num só crime, todos os temas implícitos no propósito inicial.. E nós, que já tão acostumados estamos à barbárie, mais uma vez fomos surpreendidos pelo horror. Hoje, terça 19, Jabor fez uma crônica impecável, daquelas que nos fazem experimentar a frase: “ele disse tudo que eu gostaria de dizer”, que vem não de um lugar de inveja, mas admiração por sua potência, às vezes inigualável, de analisar a tragédia pelos mais diversos ângulos. Portanto, me restaram apenas algumas elocubrações psicanalíticas, inerentes ao meu oficio e à minha condição humana, de refletir sobre o que aconteceu em São Paulo. Que forças açoitaram a alma daquela mulher, fazendo com que matar fosse insuficiente? Pois foi preciso cortar em pedacinhos o sujeito que ela supostamente amava. Que afetos a invadiram, que ódios se sobrepuseram, que interesses escusos se apossaram dela nesse ritual macabro? O ideal de amor romântico que ainda persiste e que não leva em consideração as impurezas que profanam o sagrado, traz à luz a espécie humana em sua mais absoluta ignorância. Aquela que vem do ignorar mesmo, por não querer fazer contato com o inumano que constitui o humano. O discurso científico, se dizendo além dos tabus e dos preconceitos, busca a normalidade e a objetividade. A experiência clínica nos coloca face a face com outras perspectivas. Rejeições e abandonos são duas das mais fortes experiências que podem levar um ser a lugares internos inimagináveis, plenos de ódios e marcas que habitam os subterrâneos do ser. Elize, para além de outras patologias que possivelmente a constituem, foi “atiçada” em suas profundezas, naquilo que suscita amargura, dor e perversão. Faz-se necessário aqui esclarecer, que não se pode justificar um crime e um esquartejamento por conta disso, mas faz-se necessário, também, demarcar com firmeza, que é preciso cuidado com o que se diz às almas esquartejadas ao longo da vida. E Matsunaga parece não ter sido cauteloso nesse sentido. Também ele estava possuído, provavelmente, por suas questões e desejos obscuros. Abriu-se a vários movimentos, não levando em consideração que estava diante de alguém em situação de risco.
Alguém por um triz.E fez-se alvo. Somos feitos de parcialidades. Não temos essa inteireza que tanto buscamos. Podemos vivê-la apenas em momentos sublimes, mas transitórios, porque a morte nos mostra, diariamente, que tudo pode mudar a cada instante. A descontinuidade é característica fundamental da existência e o homem, que ao mesmo tempo que é herdeiro, é também criador da cultura. Diante da moral constituída em que nasce, tem que gerar uma moral constituinte, a partir de experiências dolorosamente vividas. Diante de um passado que muitas vezes condiciona atos, pode reassumi-lo ou recriá-lo. Elize fez a pior escolha: destruiu e esquartejou a família, deixando para sua filha um futuro assombrado por um horror inapagável. Crescer tendo como pano de fundo a montagem desse quebra-cabeça hediondo, colorido pelo sangue paterno e pela monstruosidade do ato materno, será missão de pura dor, que não poderá ser embalada pela suavidade de “Pour Elise”, de Beethoven.

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