1-A que se refere exatamente esse conceito de “gordura psíquica”?
Ele é um desdobramento da noção de trauma, já que toda e qualquer situação traumática diz respeito a um excesso, seja de dor ou de qualquer transbordamento, que se transforma num outro tipo de gordura que o psiquismo não tem como dar conta. Nem o corpo. Esses excessos dizem respeito àquilo que sobra e que precisa ser “gasto”, pois gera angústias, medos difusos e sintomas das mais diversas ordens, tais como síndromes do pânico, fobias, anorexias, bulimias, compulsões, etc..
2-Qual o papel da pós–modernidade nesse contexto?
As tensões e o mal-estar gerados pelas demandas desse estágio da cultura, onde as práticas estéticas e as pressões sociais nos fazem acreditar que não existe vida fora do mercado, são os principais fatores do que Julia Kristeva, psicanalista francesa, chamou de “As novas doenças da alma”. A peregrinação em busca das últimas novidades para se ter um corpo perfeito, por exemplo, paradoxalmente faz com que cada vez mais surjam na clínica, corpos extremamente adoecidos. O nome clássico disso, na contemporaneidade, é stress.
3-A mídia é muito demonizada por essas tensões. Onde ela entra nisso?
Baudrillard disse que substituímos o “drama da alienação”de Marx”pelo “êxtase da comunicação”. Que a compulsão pelos contatos virou um espetáculo, um signo emblemático de mercadoria e a propaganda, como estilo de vida, dá ilusão de domínio do vazio existencial que caracteriza essa era. Os meios de comunicação são as telas de controle. Os movimentos de liberação dos anos sessenta, por razões comerciais, perderam originalmente suas implicações revolucionárias.Ganharam um caráter opressor e decadente.O fenômeno das “periguetes” é a prova mais contundente do que é ser liberada hoje.
4- Mas os avanços científicos e tecnológicos não trouxeram outra ordem de ganhos?
Claro que sim, mas parece que a ciência e a técnica, sob determinados aspectos, esqueceram o homem. Nossos corpos não foram preparados para dar conta de tantos estímulos e percepções. Paga-se um preço muito alto para acompanhar esse excesso de ofertas. Confesso que às vezes fico confusa e exausta só de olhar a quantidade de coisas que os jornais indicam no final de semana. A sensação é sempre de que perderei muita coisa e ainda bem que já me dispus a perder há muito tempo. Há uma possibilidade de expansão psíquica com essa quantidade de ofertas no mercado? Óbvio que sim. Mas perde-se em qualidade de vida. É preciso conseguir discernir o que realmente cabe na particularidade de cada um, pois a tendência é de massificação.
5-Então haveria uma possibilidade muito maior de instabilidade
emocional diante desses excessos?
Eu diria que há uma dificuldade muito grande de descolamento dessa hegemonia do “você tem que”. Esses códigos , essas exigências da exterioridade, produzem uma precariedade na formação da interioridade. Que ser você realmente quer ser? Os olhos estão todos voltados e capturados para o batom que a atriz da novela usa e que está em todas as bancas, para as dietas que fazem você perder 10 kg em 8 dias, para o salto que miraculosamente sustenta um corpo, para a bolsa do momento e que custa R$4.200,00, mas que você precisa ter, porque esses pequenos detalhes lhe darão uma ilusão de pertencimento. Eu tenho, logo eu sou. A exclusão é ligada à rejeição, à miséria existencial.
6- O que seria essa miséria existencial?
Essa busca de reconhecimento através do excesso de objetos, já é sintoma visível de um desasseguramento profundo existencial, de uma angústia decorrente da inconsistência desses preenchimentos. Uma bolsa não vai suprir um vazio que é de outra ordem. Um botox vai apena aplacar a angústia da passagem do tempo, uma lipo não vai acabar com uma insegurança que é fruto de vivências muito mais profundas. E aí as pessoas saem “gastando” para anestesiar o que diz respeito aos incômodos de não se sentirem à altura dessa forma maníaca que o mercado impõe e que é extremamente bem sucedida, pois é contínua. Cristoph Türcke, filósofo alemão que escreveu “Sociedade Excitada”, diz que essa compulsão está de tal forma estabelecida, que uma vez posta em movimento, não pode mais parar. Sua vitória se caracteriza pelo fato de que condena as pessoas a quererem sempre mais uma vez e sempre mais rapidamente.
7- Mas existem ganhos, é lógico, com esse avanços todos. Ou não?
Claro que sim. Estão aí os espelhos que refletem imagens mais apaziguadoras. E a vaidade faz parte da constituição do sujeito Mas o que se discute aqui são os excessos diante dessas novas tecnologias e a distinção entre ser e ter, entre vaidade e cuidado de si, entre o real e o ideal. Freud fez tudo o que pode para mostrar o quanto somos apaixonados pelo disfarce, pelo fantasiar-se de outro e que exibimos nossa maior inventividade quando se trata de ocultar quem somos e aquilo que não funciona bem em nós. Se por um lado todo esse aparato estético esconde o “feio”, por outro esconde, também, o que nos faz sofrer. Entre a imagem e o real, a distância às vezes se torna difícil de ser percorrida, a ponto de caber a pergunta: afinal, quem sofre de que? As pessoas se perdem de si mesmas, privilegiando a superfície, a imagem.
8-Qual a relação que a imagem tem com o poder?
Pois é, depois de tantas lutas para reverter papéis, essa revolução parece estar condenada ao retrocesso, porque ao abrir mão das transformações e práticas políticas significativas que aconteceram graças aos deslocamentos de posições e movimentos produzidos pelo feminismo, essa questão de suposto poder ligada à estética, desperdiça inúmeras conquistas. Ela escraviza e não emancipa verdadeiramente. Pois o que é ser poderosa hoje? O que um salto alto sustenta? O que um vestidinho curto e colante dá conta? Na primeira rejeição ou abandono, queda à vista. Eles não dão conta das inseguranças que assombram as profundezas da alma, das paranóias que se apresentam diante dos fatos complexos da vida. É uma cultura de superfície que não acolhe o fracasso.
9-De que forma esse processo foi se desdobrando?
Na ânsia de igualdade de direitos, muitas mulheres se perderam de sua feminilidade e da sua real potência, na medida em que estabeleceram semelhanças com o discurso masculino, tornando-se extremamente fálicas. A questão não passa pelo salto ou o batom vermelho mas por uma outra forma de sustentação que diz respeito ao discurso, a uma mudança de parâmetros, uma verdadeira revolução do pensamento na construção de outra ordem de conhecimento de si, de sua fraquezas e fragilidades e paralelamente, de sua força e potência. Ao invés de uma posição de superfície, competitiva, a negociação de território, a flexibilidade, a delicadeza, uma diferença sutil que estabeleça um novo interesse para o mercado, através da percepção e da sensibilidade.
10-- Que tipo de distorções isso produziu?
Se por vários aspectos tivemos evoluções, por outros temos sido espectadores de degradações. Ao invés de virarem sujeitos de seu próprio discurso, certas mulheres caíram no engodo de permanecerem, apenas, nos velhos lugares de objetos de consumo. Silicones e peitos turbinados viraram sinônimos de “segurança”, o que diga-se de passagem, não só empobreceu as relações afetivas, como, também, produziu essa distorção entre poder e potência, o que acabou causando um distanciamento incomensurável, um abismo, entre mulheres e homens.
11-Quais as repercussões mais visiveis nas relações amorosas? Ndamentais que deixaram um grande vazio, não somente em suas identidades, mas também em suas trocas afetivas, sócio- políticas e existenciais. Ouço no consultório muitos homens que se dizem perdidos, confusos sem saberem como se colocar diante de uma mulher. Está difícil para eles, também, afirmar sua masculinidade.
12-E os sintomas que mais se apresentam na clínica, relativos à essas questões, quais são?
Bom, eu diria que a solidão, a paranóia e a depressão formam a comissão de frente disso que nomeamos como “gorduras psíquicas” Frustrações e decepções fazem parte desse contexto social desestabilizador, na medida em que as pessoas se sentem sempre aquém dos parâmetros exigidos e tem, portanto, uma auto estima baixíssima. O trauma é uma constante na contemporaneidade. Presenciamos algumas saídas mais insistentes: ou há um isolamento para não se machucar mais ainda, ou um desespero pela visibilidade, ou as modalidades de anestesia, que apagam temporariamente a dor. Mas isso não se sustenta
13-O que é ter um corpo sustentável?
Como foi mencionado anteriormente, há um excesso de preocupação em ter um corpo com “tudo em cima”. Liftings, lipo-esculturas, peles maravilhosas, o que de fato melhora a auto estima.Pois há que se perguntar? Porque não? A questão é que isso cria uma ilusão de onipotência, enquanto ficamos impotentes diante das catástrofes existenciais. Para se fazer frente a elas, precisamos de um a outro tipo de sustentação que vem de diferentes lugares. Uma auto-estima consistente se constrói a partir da infância, da história do sujeito e de que como ele passa por ela. Freud falava em “séries complementares”, que são o conjunto de fatores que formam o caráter e a subjetividade de um ser. Essa imagem de si mesmo é vital para que sobrevivamos aos desabamentos existenciais a que estamos sujeitos. É preciso um narcisismo sustentável e não referido somente à vaidade.Temos que fazer valer nossas pulsões conservadoras e vitais.
14- Isso quer dizer que a saúde do aparelho psíquico é necessária para que a vida biológica exista?
Certamente. Uma depressão profunda acaba com todas as suas defesas imunológicas, assim como uma paixão pode te levar ao paraíso (ou ao inferno) Nesse sentido, eu diria que não basta “malhar o corpo”. É preciso cuidar da alma. E a maior “malhação” nesse sentido é conseguirmos encontrar um mínimo de equilíbrio entre as forças que nos constituem: somos construtivos e destrutivos, vitais e mortais, benditos e malditos.Somos o que somos, repetitivos, mas também criativos a partir dessas forças que estão em permanente ação dentro de nós.
15-As imagens do corpo visto prevalecem sobre as imagens do corpo vivido?
As imagens de determinadas sensações vividas são relegadas e recalcadas no silêncio do inconsciente e é nesse sentido que a psicanálise tem sua grande eficácia. É num processo analítico que podemos acessar inúmeras dessas sensações e também as fantasias que constituem o que o espelho espelha. Por isso, nós, psicanalistas, associamos permanentemente nosso ofício à arte, que também é tão reveladora do inconsciente, desses lugares de desconhecimento que podem vir a se tornar conscientes e desfazer/refazer esse corpo visto, dando-lhe novas formas e configurações.essas tentativas de igualdade, elas se perderam de características fun
Angela Villela
quarta-feira, 22 de agosto de 2012
sexta-feira, 10 de agosto de 2012
GORDURAS PSÍQUICAS
A sociedade contemporânea vem pondo os corpos à prova. De um lado o corpo-mercadoria, que tem seu prestígio afirmado por meio das técnicas de aprimoramento físico, sem contar as promessas de melhorias oferecidas pela ciência, através da genética. Por outro, um corpo que apesar de todas as chaves para a felicidade se precipita para a destruição. Esse é um corpo problemático, que substituiu sua interlocução com o divino pela medicalização.
Freud fez tudo o que pode para mostrar o quanto somos apaixonados pelo disfarce, pelo fantasiar-se de outro e que exibimos nossa maior inventividade quando se trata de ocultar quem somos e aquilo que não funciona bem em nós. O que nos faz sofrer. Entre a imagem e o real, a distância, às vezes, é difícil de ser percorrida, a ponto de caber a pergunta: quem sofre de que? O que fazer dessa demanda que se instala na forma de uma inquietação reparadora, redentora? Como sobreviver quando falta corpo, num tempo em que, mais do que nunca, os corpo são falados? Esse “corpo sustentável” que tanto se fala hoje, dá garantias de que? Como enxugar o que as lipoaspirações não tem como dar conta? Que gorduras, que sobras, não podem ser resolvidas numa plástica? A questão que se coloca, então, é: para onde vão os restos traumáticos, dolorosos que vem a reboque dessa higienização que afasta a dor, a velhice e a morte? Como perder esse peso e ganhar leveza na alma?
Para discutirmos essas e outras questões, estaremos no ESPAÇO GESTOS, a partir do dia 20/08 até 11/09, durante quatro segundas–feiras seguidas, de 20h15 às 22h.
Rua Conde Afonso Celso, nº99 _Jardim Botânico. (Em frente ao Hospital da Lagoa)
Inscrições pelos tels: 2539-9804 / 2539-0312/ 7717-4158
Até lá.
Angela Bezerra Villela
Freud fez tudo o que pode para mostrar o quanto somos apaixonados pelo disfarce, pelo fantasiar-se de outro e que exibimos nossa maior inventividade quando se trata de ocultar quem somos e aquilo que não funciona bem em nós. O que nos faz sofrer. Entre a imagem e o real, a distância, às vezes, é difícil de ser percorrida, a ponto de caber a pergunta: quem sofre de que? O que fazer dessa demanda que se instala na forma de uma inquietação reparadora, redentora? Como sobreviver quando falta corpo, num tempo em que, mais do que nunca, os corpo são falados? Esse “corpo sustentável” que tanto se fala hoje, dá garantias de que? Como enxugar o que as lipoaspirações não tem como dar conta? Que gorduras, que sobras, não podem ser resolvidas numa plástica? A questão que se coloca, então, é: para onde vão os restos traumáticos, dolorosos que vem a reboque dessa higienização que afasta a dor, a velhice e a morte? Como perder esse peso e ganhar leveza na alma?
Para discutirmos essas e outras questões, estaremos no ESPAÇO GESTOS, a partir do dia 20/08 até 11/09, durante quatro segundas–feiras seguidas, de 20h15 às 22h.
Rua Conde Afonso Celso, nº99 _Jardim Botânico. (Em frente ao Hospital da Lagoa)
Inscrições pelos tels: 2539-9804 / 2539-0312/ 7717-4158
Até lá.
Angela Bezerra Villela
sábado, 4 de agosto de 2012
JAVIER BARDEM E O ESTRANGEIRO
Quatro da tarde, entro no metrô Estação Botafogo e me dirijo ao Centro. Vagão relativamente vazio. Próximos a mim, dois casais supostamente alemães tagarelam em alto e bom som. Meus ouvidos são atingidos em cheio por esse linguajar rude, forte em sua veemência. Um paradoxo se instala na minha imaginação: apesar do peso na estrangereidade da língua, trazem no corpo a leveza de quem está de férias. Queimados do sol nesse calor invernal, bermudas, camisas coloridas, mochilas nas costas, competem com o barulho típico do metrô, numa falação que desperta em mim uma imensa curiosidade. O que falam? Do que tanto riem? O não traduzido e o intraduzível são muito atraentes por serem impenetráveis e exercem, segundo Laplanche, uma pressão, uma pulsão tradutiva e simultaneamente, impõem reiterados fracassos ao esforço tradutivo. O estrangeiro é aquele que, por nascer num local fora dos meus limites circundantes, é diferente na alteridade.
Aquelas vozes, aquele idioma, produziram uma ruptura no tecido do meu mundo interno, nessa teia de véus, imagens, sentimentos e fantasmas que constituem o pouco de realidade que nos é dado provar. E aí me lembrei de uma entrevista de Javier Bardem, ator maravilhoso e sensível, que soube como poucos expressar essa dificuldade inerente ao estrangeiro. Perguntado se era melhor dizer “eu te amo” em inglês ou espanhol, ele respondeu:
“Quando vou trabalhar numa língua estrangeira é complicado, porque é difícil colocar memória em palavras, pois você não viveu o suficiente naquela língua. Quando você diz “Te quiero”, muitas imagens vem à sua mente e é esse o poder das palavras para um ator. Você tem que se perder nessas imagens. Elas se unificam muito. Quando digo “I love you”, eu nunca disse isso antes. É necessário um tipo de cirurgia. Você tem que colocar a emoção da palavra na versão em inglês. Mas o significado é o que vale.”
O que ele lindamente aponta, é que é preciso desfazer-se da própria subjetividade para imergir e alçar uma posição que atravessa a história. O afeto é o cerne desse movimento. Há um deslocamento do investimento do sujeito, pois no centro do seu dizer, habita o que nunca se disse, no universo dessa frase há um mundo interno onde tais palavras jamais pisaram. Não há memória constituída, portanto. É preciso a presença do discurso de um Outro, é preciso a presença de uma exterioridade no centro da interioridade do sujeito. Ao trazer o estrangeiro para casa, ele transforma a língua estranha, familiar aos seus afetos. A língua natal some e a estrangeira é assimilada ao real, ganhando corpo e emoção.
Não nos damos conta, mas o fenômeno que Bardem evoca é o que normalmente acontece conosco. Mesmo que falemos a mesma língua, nunca falamos uma língua igual. Somos sempre estrangeiros, diante uns dos outros. E esse é um dos problemas vitais nas relações amorosas. Nas paixões, então, a certeza de que falam a mesma língua inebria, cega e ensurdece os apaixonados. Até porque a paixão demanda fusão. E a dor de descobrir que o outro traz no corpo marcas e memórias que produziram outras linguagens, nem sempre é uma experiência agradável. Pois, certamente, numa língua também cabem as linguagens do amor e do ódio, da virtude e da vilania, da delicadeza e da crueldade. Cada um de nós é marcado de diferentes formas na vida e isso nos torna singularmente estrangeiros.
Se um analista não for sensível a essa percepção, ele se torna surdo em sua escuta por não levar em consideração que cada pessoa que se senta a sua frente traz uma língua estranha e desconhecida em sua especificidade. No consultório, se apresentam os mais diversos idiomas, os mais distintos modos de estar na vida, as mais estranhas e complexas linguagens que demarcam diferentes territórios existenciais. Essa a maior riqueza, na minha opinião, do exercício clínico. Estamos sempre pisando em solo estrangeiro, inclusive o da nossa própria presença. A qualquer momento, podemos nos surpreender falando uma língua que nem nós poderíamos suspeitar...
Aquelas vozes, aquele idioma, produziram uma ruptura no tecido do meu mundo interno, nessa teia de véus, imagens, sentimentos e fantasmas que constituem o pouco de realidade que nos é dado provar. E aí me lembrei de uma entrevista de Javier Bardem, ator maravilhoso e sensível, que soube como poucos expressar essa dificuldade inerente ao estrangeiro. Perguntado se era melhor dizer “eu te amo” em inglês ou espanhol, ele respondeu:
“Quando vou trabalhar numa língua estrangeira é complicado, porque é difícil colocar memória em palavras, pois você não viveu o suficiente naquela língua. Quando você diz “Te quiero”, muitas imagens vem à sua mente e é esse o poder das palavras para um ator. Você tem que se perder nessas imagens. Elas se unificam muito. Quando digo “I love you”, eu nunca disse isso antes. É necessário um tipo de cirurgia. Você tem que colocar a emoção da palavra na versão em inglês. Mas o significado é o que vale.”
O que ele lindamente aponta, é que é preciso desfazer-se da própria subjetividade para imergir e alçar uma posição que atravessa a história. O afeto é o cerne desse movimento. Há um deslocamento do investimento do sujeito, pois no centro do seu dizer, habita o que nunca se disse, no universo dessa frase há um mundo interno onde tais palavras jamais pisaram. Não há memória constituída, portanto. É preciso a presença do discurso de um Outro, é preciso a presença de uma exterioridade no centro da interioridade do sujeito. Ao trazer o estrangeiro para casa, ele transforma a língua estranha, familiar aos seus afetos. A língua natal some e a estrangeira é assimilada ao real, ganhando corpo e emoção.
Não nos damos conta, mas o fenômeno que Bardem evoca é o que normalmente acontece conosco. Mesmo que falemos a mesma língua, nunca falamos uma língua igual. Somos sempre estrangeiros, diante uns dos outros. E esse é um dos problemas vitais nas relações amorosas. Nas paixões, então, a certeza de que falam a mesma língua inebria, cega e ensurdece os apaixonados. Até porque a paixão demanda fusão. E a dor de descobrir que o outro traz no corpo marcas e memórias que produziram outras linguagens, nem sempre é uma experiência agradável. Pois, certamente, numa língua também cabem as linguagens do amor e do ódio, da virtude e da vilania, da delicadeza e da crueldade. Cada um de nós é marcado de diferentes formas na vida e isso nos torna singularmente estrangeiros.
Se um analista não for sensível a essa percepção, ele se torna surdo em sua escuta por não levar em consideração que cada pessoa que se senta a sua frente traz uma língua estranha e desconhecida em sua especificidade. No consultório, se apresentam os mais diversos idiomas, os mais distintos modos de estar na vida, as mais estranhas e complexas linguagens que demarcam diferentes territórios existenciais. Essa a maior riqueza, na minha opinião, do exercício clínico. Estamos sempre pisando em solo estrangeiro, inclusive o da nossa própria presença. A qualquer momento, podemos nos surpreender falando uma língua que nem nós poderíamos suspeitar...
domingo, 29 de julho de 2012
INHOTIM E O IMPÉRIO DOS SENTIDOS
Final de semana em Belo Horizonte.
Uma sobrinha que chegara da Itália após um ano de distância, família reunida, afetos desdobrados e uma cidade que adoro, dando contorno à muitas saudades e papos para colocar em dia.Sensibilidades, portanto,à flor da pele. Poros abertos para as profundidades em perspectiva.
Para além disso tudo,finalmente,a oportunidade de conhecer um dos maiores patrimônios que esse país tem a oferecer ao mundo: Inhotim, um museu a céu aberto,cuja maior obra de arte é a própria natureza, um êxtase na sua força e esplendor, na sua harmonia estética, onde imagens exuberantes, fundidas/confundidas na extensão de um espaço luminoso, não sofrem qualquer tipo de desperdício em suas interferências assombrosas. Numa época em que poucas coisas aderem à vida, a intensidade da criação se mostra intacta e uma força latente,avessa à destrutividade do homem, nos coloca em contato com nossos sentidos mais apurados.Inhotim não é apenas para os olhos, é para as visceras.Não é para a inteligibilidade e sim para as sensibilidades que se abrem para a inexatidão. Para Bernardo Paz, o idealizador de Inhotim,o arquitetõnico parece ser de outra ordem. Ele não permite que nos afastemos das percepções sensíveis, em benefício das percepções tecnológicas, no limite da inteligibilidade.I nhotim é profundamente desestabilizador em sua harmonia, acaba com certezas e nos enche de dúvidas.Através de grandes planos, experimentamos várias sensações determinantes de nossa existência e asseguramo-nos de que aquilo é um grande e insuspeitado espaço de liberdade. É como se ali houvesse uma explosão de sentidos, que nos permite viagens transcedentais, numa súbita multiplicação da matéria, sem que minimamente ocorra a "industrialização do belo" tão temida por Walter Benjamin.Somos alimentados por imagens que não provém da mera observação direta ou da visualização ótica, mas sim dos efeitos das obras no corpo do observador. Há uma reversão de significação, já que devemos, supostamente, perder o fio de nossos raciocínios e sofrermos os impactos que o local produz. Inconsciente e poros abertos no percurso que se nos abre, vivemos o fenômeno da arte, ou seja, temos as próprias noções de espaço e tempo invalidadas. Entramos no território da profundidade, numa relação que não se reduz à experimentação ocular. Pisamos em vidros, atravessamos barreiras de arame farpado, sentamos em cadeiras que são mesas, temos nossas retinas atingidas por corpos mutilados, desrealizamos o convencional e o ideal. A interface que anula a separação clássica das posições observador/observado, abre uma outra configuração instantânea, em que ambos são acoplados numa linguagem codificada (inconsciente) e ao mesmo tempo ambígua, já que são estrangeiras umas às outras, pela interpretação subjetiva das formas. Por isso, a arte é tão próxima e cara à psicanálise, pois ambas nos fazem encontrar outros caminhos discursivos.
Entre tantos infortúnios por nós herdados, inclusive políticos, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito que podemos nos conceder, é não reduzir a imaginação à servidão, pois só ela dá conta do que "pode ser".Os acontecimentos estão lá, os tons, os sons, os rítmos e os encontramos de passagem, através de um universo infinito de sensações que expandem nosso ser. A multiplicação das performances esconde sempre um "a mais", a representação formal sendo nada mais do que uma redução entre tantas outras possíveis.
Gustave Flaubert dizia que "quanto mais telescópios forem aperfeiçoados, mais estrelas surgirão."
Flaubert e Freud adorariam Inhotim...
Uma sobrinha que chegara da Itália após um ano de distância, família reunida, afetos desdobrados e uma cidade que adoro, dando contorno à muitas saudades e papos para colocar em dia.Sensibilidades, portanto,à flor da pele. Poros abertos para as profundidades em perspectiva.
Para além disso tudo,finalmente,a oportunidade de conhecer um dos maiores patrimônios que esse país tem a oferecer ao mundo: Inhotim, um museu a céu aberto,cuja maior obra de arte é a própria natureza, um êxtase na sua força e esplendor, na sua harmonia estética, onde imagens exuberantes, fundidas/confundidas na extensão de um espaço luminoso, não sofrem qualquer tipo de desperdício em suas interferências assombrosas. Numa época em que poucas coisas aderem à vida, a intensidade da criação se mostra intacta e uma força latente,avessa à destrutividade do homem, nos coloca em contato com nossos sentidos mais apurados.Inhotim não é apenas para os olhos, é para as visceras.Não é para a inteligibilidade e sim para as sensibilidades que se abrem para a inexatidão. Para Bernardo Paz, o idealizador de Inhotim,o arquitetõnico parece ser de outra ordem. Ele não permite que nos afastemos das percepções sensíveis, em benefício das percepções tecnológicas, no limite da inteligibilidade.I nhotim é profundamente desestabilizador em sua harmonia, acaba com certezas e nos enche de dúvidas.Através de grandes planos, experimentamos várias sensações determinantes de nossa existência e asseguramo-nos de que aquilo é um grande e insuspeitado espaço de liberdade. É como se ali houvesse uma explosão de sentidos, que nos permite viagens transcedentais, numa súbita multiplicação da matéria, sem que minimamente ocorra a "industrialização do belo" tão temida por Walter Benjamin.Somos alimentados por imagens que não provém da mera observação direta ou da visualização ótica, mas sim dos efeitos das obras no corpo do observador. Há uma reversão de significação, já que devemos, supostamente, perder o fio de nossos raciocínios e sofrermos os impactos que o local produz. Inconsciente e poros abertos no percurso que se nos abre, vivemos o fenômeno da arte, ou seja, temos as próprias noções de espaço e tempo invalidadas. Entramos no território da profundidade, numa relação que não se reduz à experimentação ocular. Pisamos em vidros, atravessamos barreiras de arame farpado, sentamos em cadeiras que são mesas, temos nossas retinas atingidas por corpos mutilados, desrealizamos o convencional e o ideal. A interface que anula a separação clássica das posições observador/observado, abre uma outra configuração instantânea, em que ambos são acoplados numa linguagem codificada (inconsciente) e ao mesmo tempo ambígua, já que são estrangeiras umas às outras, pela interpretação subjetiva das formas. Por isso, a arte é tão próxima e cara à psicanálise, pois ambas nos fazem encontrar outros caminhos discursivos.
Entre tantos infortúnios por nós herdados, inclusive políticos, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito que podemos nos conceder, é não reduzir a imaginação à servidão, pois só ela dá conta do que "pode ser".Os acontecimentos estão lá, os tons, os sons, os rítmos e os encontramos de passagem, através de um universo infinito de sensações que expandem nosso ser. A multiplicação das performances esconde sempre um "a mais", a representação formal sendo nada mais do que uma redução entre tantas outras possíveis.
Gustave Flaubert dizia que "quanto mais telescópios forem aperfeiçoados, mais estrelas surgirão."
Flaubert e Freud adorariam Inhotim...
terça-feira, 24 de julho de 2012
OUTRO MODO
"outro modo de dizer
tudo atravessa o nada
e o que faz acontecer
ambigüidade estabanada
quero tropeçar em erros, acertos acidentais
antagonizar discursos, sujeitos transcendentais
tem outro modo de ser
soa sobre o som
(silêncio)
e o que faço é desfazer
círculo em fala quadrada
quero tropeçar em nada e dizer
quero transformar o erro
em um outro modo de fazer o som
no outro modo
não tem semitom"
Graveola e o Lixo Polifônico
tudo atravessa o nada
e o que faz acontecer
ambigüidade estabanada
quero tropeçar em erros, acertos acidentais
antagonizar discursos, sujeitos transcendentais
tem outro modo de ser
soa sobre o som
(silêncio)
e o que faço é desfazer
círculo em fala quadrada
quero tropeçar em nada e dizer
quero transformar o erro
em um outro modo de fazer o som
no outro modo
não tem semitom"
Graveola e o Lixo Polifônico
CATIVANTE
Me apresento, eu sou mais um cativante
Fruto de um vendaval
E uma procura incessante
Todo cansaço é meu lar
Basta que encontre
Do feitiço aquela mão
Que me esquente a vida
Não há fronteira ou raia
Limite ou há divisa
Quero tal momento de alimento e água
Só ele segura o vendaval
Tadeu Franco
Fruto de um vendaval
E uma procura incessante
Todo cansaço é meu lar
Basta que encontre
Do feitiço aquela mão
Que me esquente a vida
Não há fronteira ou raia
Limite ou há divisa
Quero tal momento de alimento e água
Só ele segura o vendaval
Tadeu Franco
segunda-feira, 2 de julho de 2012
PARA WOODY, COM AMOR
Poucas coisas na vida me dão tanto prazer como assistir a um filme de Woody Allen. Vocês se lembram da Rosa Púrpura do Cairo, em que a personagem saía da tela e vinha conversar com o espectador? Pois é, eu tenho vontade de fazer o percurso inverso: sair da cadeira, entrar na tela e fazer parte da história. Perdão aos que o acham um chato, melancólico e fóbico e não conseguem enxergar que, exatamente por ele se enquadrar nessas duas categorias, é que a sua genialidade é maior ainda. Ao usar todas as suas “doenças” e transformá-las em obras-primas, Woody consegue fazer o que muitas vezes a própria análise não consegue: tornar risíveis as tragédias que nos constituem. Seu pavor pela morte, suas paranóias, suas manias e obsessões, suas fragilidades e inseguranças, são a matéria-prima de seu fazer artístico. Woody humaniza o ridículo que muitas vezes fazemos questão de esconder. Os seus muitos anos de análise e de vida fizeram dele um ser sábio, que conhece os meandros e as complexidades da alma. Tudo parece tão verdadeiro e simples,como ele demonstra através de um personagem de seu último filme,um cantor de óperas de chuveiro, que só consegue sê-lo nessas condições.Fora desse cenário, a magnitude de sua voz se perde. O que parece impossível de ser conciliado, num passe de mágica é resolvido. Basta levar o chuveiro para o palco. Perfeito. Que metáfora linda do que é o cinema. Nele, o imaginário pode tudo o que a realidade inviabiliza. Essa a grande arte que nos abstrai de tudo que nos cerca no real. Tenho dívidas incomensuráveis com Woody. Ele já me retirou de momentos dificílimos, ao me capturar com os olhos e os ouvidos, perdida de mim mesma horas a fio. Sim, porque quando um filme dele vai entrar em cartaz, curto o antes, o durante e o depois. Sem contar que ainda nos transporta, pelo valor do ingresso, para Manhattan, Barcelona,Paris e agora Roma, fazendo-nos passear pelos lugares mais incríveis como se lá estivéssemos e fossemos íntimos daqueles personagens que ele cria. Com alguns minutos de sessão, parece que já nos conhecemos a tempos, tão próximos ficamos do que se passa na tela. Todas as situações nos parecem familiares, pelo naturalismo que ele imprime às histórias narradas, que nos remetem ao mais simples e banal dos cotidianos. Que atire a primeira pedra quem nunca se assustou com uma turbulência, quem nunca cantou no banheiro, quem nunca teve medo da morte. E ele ainda se apossa de sua nostalgia e nos faz atravessar o tempo, entrando num carro em Paris e indo a uma festa com Hemingway, Fitzgerald, Picasso e outros companheiros da mesma estatura. Assim ele o fez em “Meia-noite em Paris”. Em “Hannah e suas irmãs”,um Michael Caine fantástico encarna um homem casado apaixonado pela cunhada, fazendo-nos experimentar todas as sensações pueris que só um apaixonado pode viver. Agora, em “Para Roma, com amor”, embalados por “Volare”, viajamos pela cidade eterna com a mistura entre ficção e realidade que a contemporaneidade imprime às relações amorosas ou meramente sociais.O que é verdadeiro e o que é falso? Nessa transitoriedade em que as pessoas se encontram, o que vem de dentro e o que vem de fora? Na Roma dos paparazzos , ninguém escapa de dizer o que comeu , aonde e o que fez depois. Isso é de suma importância na auto-gozação hilária que Woody faz de seus próprios pavores. Não esquecendo as inspirações advindas de sua paixão por Bergman, revelada em “Interiores”,” A outra”,etc.... Aliás, misturado ao seu lado cômico,lá está o sensível na perspicácia do olhar observador-artístico sobre a vida, as pessoas e a cultura de cada lugar. Ele é literalmente Zelig , ao captar as nuances e tranportá-las para as telas.E o que dizer das trilhas sonoras? São proustianas, nos levando a outras temporalidades, nos fazendo querer dançar até morrer. Opa!!! Woody mudaria de assunto correndo...
Uma amiga de São Paulo me ligou agora falando que a crítica de lá achou que o filme deixa a desejar.
Woody, acredite, não foi o meu caso, que, aliás, é de amor assumido. O que já ri desse mundo medíocre através da sua inteligência, não há como ser pago.
I love you. Thanks a lot! Come to Rio!
Uma amiga de São Paulo me ligou agora falando que a crítica de lá achou que o filme deixa a desejar.
Woody, acredite, não foi o meu caso, que, aliás, é de amor assumido. O que já ri desse mundo medíocre através da sua inteligência, não há como ser pago.
I love you. Thanks a lot! Come to Rio!
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