sábado, 4 de agosto de 2012

JAVIER BARDEM E O ESTRANGEIRO

Quatro da tarde, entro no metrô Estação Botafogo e me dirijo ao Centro. Vagão relativamente vazio. Próximos a mim, dois casais supostamente alemães tagarelam em alto e bom som. Meus ouvidos são atingidos em cheio por esse linguajar rude, forte em sua veemência. Um paradoxo se instala na minha imaginação: apesar do peso na estrangereidade da língua, trazem no corpo a leveza de quem está de férias. Queimados do sol nesse calor invernal, bermudas, camisas coloridas, mochilas nas costas, competem com o barulho típico do metrô, numa falação que desperta em mim uma imensa curiosidade. O que falam? Do que tanto riem? O não traduzido e o intraduzível são muito atraentes por serem impenetráveis e exercem, segundo Laplanche, uma pressão, uma pulsão tradutiva e simultaneamente, impõem reiterados fracassos ao esforço tradutivo. O estrangeiro é aquele que, por nascer num local fora dos meus limites circundantes, é diferente na alteridade.
Aquelas vozes, aquele idioma, produziram uma ruptura no tecido do meu mundo interno, nessa teia de véus, imagens, sentimentos e fantasmas que constituem o pouco de realidade que nos é dado provar. E aí me lembrei de uma entrevista de Javier Bardem, ator maravilhoso e sensível, que soube como poucos expressar essa dificuldade inerente ao estrangeiro. Perguntado se era melhor dizer “eu te amo” em inglês ou espanhol, ele respondeu:
“Quando vou trabalhar numa língua estrangeira é complicado, porque é difícil colocar memória em palavras, pois você não viveu o suficiente naquela língua. Quando você diz “Te quiero”, muitas imagens vem à sua mente e é esse o poder das palavras para um ator. Você tem que se perder nessas imagens. Elas se unificam muito. Quando digo “I love you”, eu nunca disse isso antes. É necessário um tipo de cirurgia. Você tem que colocar a emoção da palavra na versão em inglês. Mas o significado é o que vale.”
O que ele lindamente aponta, é que é preciso desfazer-se da própria subjetividade para imergir e alçar uma posição que atravessa a história. O afeto é o cerne desse movimento. Há um deslocamento do investimento do sujeito, pois no centro do seu dizer, habita o que nunca se disse, no universo dessa frase há um mundo interno onde tais palavras jamais pisaram. Não há memória constituída, portanto. É preciso a presença do discurso de um Outro, é preciso a presença de uma exterioridade no centro da interioridade do sujeito. Ao trazer o estrangeiro para casa, ele transforma a língua estranha, familiar aos seus afetos. A língua natal some e a estrangeira é assimilada ao real, ganhando corpo e emoção.
Não nos damos conta, mas o fenômeno que Bardem evoca é o que normalmente acontece conosco. Mesmo que falemos a mesma língua, nunca falamos uma língua igual. Somos sempre estrangeiros, diante uns dos outros. E esse é um dos problemas vitais nas relações amorosas. Nas paixões, então, a certeza de que falam a mesma língua inebria, cega e ensurdece os apaixonados. Até porque a paixão demanda fusão. E a dor de descobrir que o outro traz no corpo marcas e memórias que produziram outras linguagens, nem sempre é uma experiência agradável. Pois, certamente, numa língua também cabem as linguagens do amor e do ódio, da virtude e da vilania, da delicadeza e da crueldade. Cada um de nós é marcado de diferentes formas na vida e isso nos torna singularmente estrangeiros.
Se um analista não for sensível a essa percepção, ele se torna surdo em sua escuta por não levar em consideração que cada pessoa que se senta a sua frente traz uma língua estranha e desconhecida em sua especificidade. No consultório, se apresentam os mais diversos idiomas, os mais distintos modos de estar na vida, as mais estranhas e complexas linguagens que demarcam diferentes territórios existenciais. Essa a maior riqueza, na minha opinião, do exercício clínico. Estamos sempre pisando em solo estrangeiro, inclusive o da nossa própria presença. A qualquer momento, podemos nos surpreender falando uma língua que nem nós poderíamos suspeitar...

3 comentários:

Angela Villela disse...

Querida Angela,


Parabéns pelos conteúdos do seu Blog !
Bj
Andréa
Enviado via iPad

Em 05/08/2012, às 20:24

Angela Villela disse...

ngela, tá BÁRBAROOOOOO!!!!! Amei o "ballet" que você fez! Uma dança realmente harmoniosa de conteúdos e relações. Obrigada amiga. É um prazer ler um texto tão gostoso! Vou mandar para ojtras pessoas que sei, como eu, apreciarão muito.

bjos e parabéns!

Angela Villela disse...

Angela,

Adorei seu texto, deixei uma mensagem.... chegou?
bjs
edna