terça-feira, 20 de março de 2012

"SHAME" E AS TREVAS DA COMPULSÃO

Joseph Conrad e seu belíssimo “Coração das trevas", um dos livros que mais me impressionaram na vida, abriram a coluna de José Castello nesse último sábado. E por cúmulo da coincidência, ele estava vivo nas minhas entranhas, pois acabara de assistir a um filme que me colocou direto, como aponta Castello, “frente a frente, de modo tão frontal com a selvageria que, inconscientes, carregamos dentro de nós”, as nossas “partes malditas” abordadas em outro artigo desse blog.
"Shame", o filme, é avassalador. Profundamente incômodo e concreto. Suas imagens nos levam a lugares internos absolutamente inquietantes, até porque ligados àquilo que não se pode tocar, ou seja, o tabu. Li algumas críticas excelentes, mas que obedecem a outros trilhamentos. É sabido que nunca assistimos ao mesmo filme e aqui cabe o olhar que vem da psicanálise.O tema é muito freudiano e rico, para além de uma metáfora do vazio que assola esses tempos viciados em sensações. Estou lendo um livro chamado "Sociedade excitada",do filósofo alemão Christoph Türcke, num grupo de estudos da psicanalista Jô Gondar, em que ele diz que "hoje há uma compulsão `a ocupação e à emissão e que a partir de um determinado nível de excitação, as sensações devem tornar-se aquilo que as faz identificadas como tal e apenas aquilo que é forte o suficiente e não se depara com uma região anestesiada , poderá, doravante, preencher os requisitos da sensação... Surge a suspeita de que a sensação no sentido de "percepção por excelência" não mais se expandiu. " Ou seja, é do trauma que Türcke fala aqui e parece que só diante dele é possivel sairmos da letargia. Diz ele, também, que "segundo Freud, a pele ou membrana, se encontra em permanente adaptação ao mundo exterior, até que por fim ela se encontra tão calcinada pelo efeito da estimulação, que se torna dura e inorgânica,morre, para que todas as camadas mais profundas do organismo sejam poupadas do mesmo destino. A "casca" é , portanto, pele morta, endurecida em legítima defesa, contra a sobre- excitação que vem do mundo exterior. "
O diretor, porém, não se contenta só com esse enfoque, ele vai além. Suspeita-se que uma cegueira maior atinge as retinas que se chocam diante das cenas que se arrastam na tela, ligadas à perversão, ao obsceno, ao horror e no cerne de tudo, ao incesto.
Brandon, o personagem principal, visceralmente vivido por Michael Fassbender, é um não sujeito, assujeitado que é à compulsão sexual. Bem sucedido profissionalmente, bonito e sedutor, ele é fixado , na sua trágica existência, em sexo. No meio do trabalho tem que ir rápido ao banheiro para se masturbar e passa as horas livres conectado a um arsenal virtual pornográfico que, supostamente, o preenche. Não consegue transar senão com prostitutas e mantém um método rigoroso,obedecendo à rituais diários na sua rotina inquebrantável.Acorda, bebe algo, toma banho e vigorosamente se limpa. Com o mesmo casaco, sai, pega o metrô, onde seu olhar vazio só é descongelado quando assedia e é assediado , quando joga o jogo voyeurista que tanto conhece. O espectador é exaustivamente inserido nessa rotina , numa sucessiva compulsão à repetição. Ouvi vários resmungos e até um “que filme chato”. Ouvi, sim, a insuportabilidade do vazio imposto pelo cineasta, Steve McQueen.
Isso rende um bom tempo do filme, até que Brandon uma noite chega em casa e vê que seu apartamento foi ocupado. No banheiro, uma mulher nua joga uma toalha nele e diz. ”Estava com muitas saudades de vc”.
A partir de então, pela intimidade que permeia a relação, o espectador fica se perguntando quem é aquela mulher que, visivelmente , por seu caráter invasivo, produz nele um enorme desconforto.Ela implora para ficar e diz que não tem para onde ir. Ele acaba cedendo e ela fica. A princípio, o espectador desavisado desconfia, mas não sabe, verdadeiramente, de quem se trata, pois as cenas revelam uma cumplicidade, uma intimidade excessiva, de outra ordem. A partir de um convite feito ao chefe , fica claro que Sissy é irmã dele. A invasão anunciada desde a sua chegada, vai, progressivamente, se expandindo, seja pela desordem no “casulo” virado do avesso, seja pela falta de privacidade de Brandon de praticar seus rituais. Ela o surpreende em pleno ato masturbatório. Os gestos de desespero e impulsividade, logo revelam, também, a compulsividade dela, assim como a afetação de Brandon diante daquela Presença. Ao ouvi-la cantar num bar, ele chora e ao vê-la na transparência de sua devassidão, transando com o chefe dele, que é casado, nos primeiros minutos de conhecimento, Brandon é só dor. Outras perguntas, então, passam a insistir:
Que história atravessa aquelas vidas ? Qual o passado delas? Porque o filme se chama "Vergonha?"
É de conhecimento dos psicanalistas que na base de qualquer compulsão está a angústia e que no solo da constituição de um tabu encontra-se a renuncia à satisfação de um desejo .Entretanto, essa renúncia que se expressa em um ritual feito de diversas privações, não é suficiente . O desejo de transgressão parece ser tão poderoso, que, para impedi-lo de surgir novamente, é necessária uma força suplementar, completando o esforço repressor contido no cerimonial de interdição. Essa força demandante, que pede mais e mais, faz parte de um tipo de consciência, produto do sentimento de culpa a que Freud se refere em "Totem e Tabu":" É possível falar de uma "consciência moral" e após um tabu ter sido violado, de um senso de culpa- tabu...Essa consciência pode ser descrita como uma "consciência angustiante." , onde podemos incluir a vergonha.
Para além de todas as abordagens possíveis de "Shame", a hipótese de ligar a angústia que reduz a existência de Brandon a um sofrimento devastador por conta de uma relação incestuosa com sua irmã, me parece a trilha mais instigante a seguir. É algo que ele tenta inultilmente apagar, seja correndo sem destino pelas ruas, gastando o excesso que o perturba, seja livrando-se dos objetos que compõem seu universo íntimo.A compulsão é a sua modalidade de fuga, de apagamento, como o fazem todos os viciados e compulsivos.
Após fracassar na tentativa desesperada de se envolver com uma mulher que ultrapassa algumas de suas barreiras defensivas, solidamente estruturadas,Brandon se entrega aos desvarios do submundo que serve de cenário para sua compulsividade embriagadora. Nesse ínterim, não atende aos apelos de sua irmã; tudo que quer é aniquilar a angustiante insistência pulsional que o invade. Ao sair do torpor anestésico que se encontrava, ouve a voz dela ao telefone chamando-o. Corre para casa e encontra Sissy mergulhada num mar de sangue, após fazer mais um entre tantos cortes já existentes na carne viva também marcada pela dor e pela punição, enquanto que a alma de Brandon se dilacera em pedaços.
O filme acaba no vazio , deixando no espectador a sensação de que o personagem não tem outra saída a não ser repetir, repetir, repetir..trazendo à tona a trágica dimensão da existência de um homem, não apenas contemporâneo, mas de um homem que sofre.
"Shame" ou "Vergonha"é um filme que faz sangrar almas.


COMENTÁRIO:
É amiga, seu texto é preciso e belo. A questão da vergonha (que nosso velho Freud já havia trabalhado com inteligência nos "Três Ensaios") foi muito bem colocada. A vergonha é uma das forças da moralidade que se levantam contra a realização das puulsões em sua versão perverso polimorfa... e isso se liga ao tabu, em sua versão trágica. Realmente, nosso Brandon era apaixonado pela irmã e isso doía-lhe muito, encravado (não sublimado) que estava em sua alma, sem elaboração adequada. E tome sexo, com tudo e todos,as condição de não se envolver e amar!!! Pesado. Na última cena aquela muulher que já havia aparecido parece ainda mais com a irmã e o olhar ressabiado de Brandon, cansado, diz de seu deserto. P)oderia ele se interessar de outra maneira por aquela mulher? Não sabemos. Mas na clíniica acompanhamos as torturas... e desesperanças.
Simplesmente magníficos, seu texto e o filme. Bjs.
Luiz Felipe Nogueira de Faria

4 comentários:

Angela Villela disse...

Angela querida,
Melhor do que esse filme, só mesmo esse texto da minha amiga!!!!!
Beijos e parabéns pelo texto!
Rosane

Angela Villela disse...

AMIGA, VC VIU E LEU? QUE BOM!!!
FILMAÇO!!
BJS GRATOS

Angela Villela disse...

Pretendo ver Shame e gostei da sua indicação do livro do C. Turcke. A gente quer entender o mundo em que vivemos, com a humildade de saber que não conseguiremos. Mas a tentativa preenche um pouco o nosso próprio vazio.
Beijos. Obrigada. Continue escrevendo e compartilhando suas interrogações.
Susan

Angela Villela disse...

Meus cumprimentos pelo excelente artigo sobre "Shame". Beijo, Bosco.