quinta-feira, 8 de março de 2012

COMENTÁRIO DE FILME

A Separação de Asghar Farhadi,
Por Luiz Felipe Nogueira de Faria

Em mais um enérgico e delicado trabalho, o diretor do aclamado “Procurando Elly” nos convoca uma vez mais a pensar sobre a questão que concerne aos efeitos dos ditos e (principalmente) dos não ditos nos encontros que cada um realiza consigo mesmo e com os outros, no que isso implica em compromisso com a palavra e com os atos, com as escolhas contidas nas crenças e com o desejo embutido nas opções éticas. No limite, uma discussão sobre os impasses do humano na cultura, nas relações tecidas no dia a dia, sobre a ambiência que promove as dores e ódios, enfim, sobre o compromisso com a verdade, ela mesma um objeto sempre mutante e arredio às posições que buscam a afirmação de naturalidade e neutralidade.
É possível propor que um dos vários impactos do filme diz respeito ao fato de todos os personagens que compõem a trama se mostrarem frágeis e, de certa forma, solicitando acolhimento. Ao mesmo tempo, todos são duros nas ações e nos enfrentamentos, exceção talvez das crianças, cuja perplexidade e ternura deixa entrever um futuro menos sombrio, embora elas estejam expostas, e de forma cruel às intempéries que caracterizam os (pesados) conflitos que se desenrolam, assim como a figura do pai idoso e adoentado, macabra imagem da decrepitude e da dependência ao outro.
O filme começa com um plano curto no qual alguns documentos de identidade são fotocopiados, deixando entrever rostos e nomes ainda por ganhar corpo e densidade. Prossegue com um plano médio fixo dando a ver um casal em litígio com cada um dos cônjuges expondo seus argumentos em torno da idéia de se separarem. A câmera se posta do ponto de vista de um juiz que deverá arcar com uma sentença decisória a respeito das reivindicações apresentadas. E esse juiz interroga o casal, especialmente a mulher (Simin), sobre os motivos da reivindicação que em última instância é sua. Ela argumenta que prefere ir para o exterior (o visto foi conseguido) porque será melhor cuidar da filha em outras circunstâncias... (a que circunstâncias ela se refere?) O marido (Nader) diz que tem que cuidar do pai velho e que isso já emotivo suficiente para tomar outra posição. Seu apego ao pai é pungente, mas logo ficamos sabendo que a filha do casal é também motivo de litígio.
O juiz parece adotar o ponto de vista da tradição e se alia aos valores que indicam a conduta honrada de Nader, como pai e esposo. Tudo permanece em suspenso e inconcluso e ambos se retiram. Ocorre que nós espectadores já fomos fisgados e comprometidos, pelo simples fato de que na maior parte desta longa cena Simin e Nader a nós se dirigirem, com seus olhares e pedidos. Ambos apresentam falas razoáveis e aceitáveis, ambos sofrem e exigem o reconhecimento de seus motivos e aspirações. Solicitam nossa escuta e nossa afetação. Aí as identidades não mais se reduzem a formalidades paralisadas num retrato sem vida. Ao contrário, se fazem intensas tomando os corpos e transgredindo as medidas ditas racionais.
No prolongamento da trama surgem outros personagens não menos sofridos e carentes de reconhecimento, inclusive social. Também mais um casal, não mais de classe média (como Nader e Simin): Hodjat, que aceita com muitas dúvidas o trabalho de cuidar do pai de Nader e Razieh desempregado e ludibriado (assim parece) pelo antigo patrão. Ambos afeitos à tradição religiosa (o alcorão é sua verdade e referência ética e até moral). Nesta família também há uma criança (bem mais nova) e, como veremos, silêncios tão necessários quanto perigosos...
Por conta do que poderia ser classificado como um “mal-entendido”, mas num contexto onde há uma perda dolorosa para Hodjat e um ato impensado e violento de Nader, estes dois casais estarão frente a frente nos tribunais, no hospital, em suas casas, no colégio onde uma das crianças estuda. Sempre em litígio, numa atmosfera acusatória onde as piores culpas funcionam como peçonhas mortais, seja para salvaguardar a unidade dos casais, seja para desnudar ainda mais os restos que insistem em esgarçar as carnes mais doloridas desta suposta unidade.
Um ponto a discutir é: se há necessariamente em toda a palavra um lugar de silêncio, e se em todo silêncio há alguma fala que implica o irrepresentável, os encontros humanos, inclusive os mais potentes, não poderão escapar de seus avessos, fato que marca a positividade do (não/mal) dito para os sujeitos. Nesta história de gente comum observamos que todos mentem para si e para os outros, todos escondem e precisam esconder algo, todos se deixam capturar no sintoma da culpabilização a todo preço (seriam essas as “circunstâncias” que Simin queria evitar no seu intento de sair para o exterior?). Ao mesmo tempo é no atravessamento das trilhas que constituem esse sintoma que algo diferente poderá se fazer. Nesta linha, a ternura sábia das crianças (Termeh e Somayeh), é bastião de saúde e da alegria/criação possível. Quando os adultos se permitiram abandonar a rede de orgulhos e recalques e funcionar com a coragem das crianças alguma coisa da ordem da verdade pôde acontecer.
É sempre interessante ver um cinema que se esforça em presentificar os afetos e a complexidade das histórias sem apelar para o maniqueísmo, sem as clássicas dicotomias bem/mal, verdade/erro normal/patológico, e, no caso específico dessa história, moral religiosa/moral laica. Muito bom constatar que os movimentos de câmera flagram suspiros, tensões, intensidades indizíveis e não se contentam em contar com imparcialidade uma história, mas se esmeram em nos envolver, inquietar, forçando nossa presença interessada. Todo o elenco está afinado, as crianças com semblantes maravilhosos... Teria Asghar Farhadi desejado contar esta história do ponto de vista das crianças?
“A Separação” ganhou o Oscar. E daí? Titanic também ganhou . O que fica, mais do que a premiação e o sucesso é a grandeza de expor, a partir de um estudo específico de uma certa atmosfera cultural , questões que a ultrapassam em muito, obrigando-nos ao pensar. Resta-nos agradecer a generosidade deste gesto.

2 comentários:

Jeane Carvalho disse...

Angela querida, adorei o blog e já convidei os amigos para se cadastrarem. Bela iniciativa. bj

Angela Villela disse...

JEANE, que bom te ler e fazer contato.
Grata e vamos no falando.Vc Já viu Shame? Depois leia o artigo a respeito. O filme é demais.
Bj grande