segunda-feira, 14 de maio de 2012

OS POLÍTICOS NO ESPELHO DO ROSA

"Demóstenes".
Geralmente, quando ouvimos um som, uma palavra, associamos a algo ou alguém.
A primeira vez que ouvi o nome "Demóstenes", associei a um personagem da Grécia Antiga.
Quando vi Demóstenes, ainda não associei o visto a alguma figura incomum. Pelo contrário, vi um político comum
Só quando li sobre Demóstenes é que comecei a associá-lo ao elementar e primordial contemporâneo, isto é, à idéia de onipotência que assola nossos cotidianos. Demóstenes presentifica um fenômeno recorrente que se refere a aptidão de,duplicar seu ser e o tomar.como verdade.Exemplo:ao se ver exposto frente às gravações, ele disse: "Esse não sou eu". Quem seria ele então? Esse ou o outro?
É impressionante a quantidade de duplos, triplos, etc... na cena nacional. Hoje, nos relacionamos com fatos políticos sempre com essa dimensão de perplexidade, com esse sentimento de estranheza, sem nos darmos conta de que estamos diante de algo grande demais para conhecermos inteiramente, pois estamos nos relacionando com uma gama imensa de sintomas. Diariamente, nossos ouvidos são invadidos por negações de eus. Somos surpreendidos por outras faces que se revelam nas ironias do destino. Poderíamos dizer que nunca o DSM (manual para profissionais da área da saúde mental) foi tão útil à mídia, na cobertura de assuntos políticos. Seriam todos perversos, psicóticos, esquizo-paranóides? É possível encontrar um lugar onde a política seja revestida de um mínimo de saúde mental e decência? Se hoje clamamos por alguma normalidade na vida pública, é no sentido de uma normalização que implique num mínimo de critérios éticos, coerentes com o que já se denominou de “um fazer político”.
Clément Rosset, filósofo francês, deveria ser lido por Demós-tenes e outros, na medida em que trabalha de forma admirável esse desdobramento de personalidade, que aponta para graves fenômenos psicopatológicos. Ele diz que "o narcisista sofre por não se amar; ele só ama a sua representação....No par maléfico que une o eu a um outro fantasmático, o real não está do lado do eu, mas sim do lado do fantasma..... O eu é um outro, a verdadeira vida está ausente". Para Rosset o "pior erro para aquele que julga ser o seu duplo, mas que é na realidade o original que ele próprio duplica, seria tentar matar esse duplo. Matando-o, matará ele próprio, ou melhor, aquele que desesperadamente ele tenta ser".
Também na literatura encontramos descrições notáveis desse fenômeno, como por exemplo numa passagem do conto de Guimarães Rosa, "O Espelho". Vejam só:
"Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei… Explico-lhe:: dois espelhos – um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era – logo descobri.., era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?..Desde aí, comecei a procurar-me – ao eu por detrás de mim – à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio.Isso ninguém nunca o fizera antes...Olhos contra os olhos. Soube-o_ os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente."
Em sua genialidade, Rosa se encontra com Freud nesse escrito, em que o sujeito se vê numa "outra cena",numa "terra assustadoramente estranha", como se viu Demóstenes ao ter que ficar face a face com seu duplo.
São vários os escritores que tentaram resolver de forma prosaica e poética este enigma do outro, do demoníaco. Machado de Assis também escreveu sobre o espelho e Fernando Pessoa com seus heterônimos, se desdobrou em três: Ricardo Reis, Alberto Caieiro e Álvaro de Campos, além de Bernardo Soares, que é, dentro da ficção de seu próprio “Livro do Desassossego”, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. É considerado um semi-heterónimo porque, como seu próprio criador explica "não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade."
A figura do duplo se notabilizou , também, na história das mentalidades.Primitivamente, o duplo era uma garantia contra a destruição de eu, "um enérgico desmentido à potência da morte" (Otto Rank) e a alma imortal foi o primeiro duplo do corpo. Porém, foi Freud quem mais se aproximou desse espanto com sua conceituação de "O Estranho " (Das Unheimliche), ou seja, aquilo que emerge repentinamente, como uma força demoníaca, irredutível e que, em sua obscuridade, descentra o sujeito e domina o jogo. Os sonhos, os delírios e os sintomas são construções do inconsciente. Todos eles desconstróem as relações entre as coisas, tais como estas se impõem na vida empírica.Freud, ao esclarecer que somos vários e que, portanto, nunca estamos assegurados das manifestações possíveis dessa multiplicidade,antecipa em muitos anos o lado obscuro desses acontecimentos que hoje nos traumatizam e envergonham. Somos testemunhas de eternos desmentidos, de juras de honras falidas, de máscaras que não se sustentam. Vivemos assujeitados à permanentes transgressões dos duplos, triplos, etc.. Luis Cláudio Figueiredo no ensaio “A lei é dura, mas...”, coloca essa questão de modo original, ao falar que vivemos num país de um “jurismo artificioso e esteticista, divorciado das condições políticas subjacentes.” Surge uma idéia de “nação” que é fictícia_ as leis precedem as realidades a serem reguladas. A idéia de justiça passa a ser uma maquiagem de conflitos.
A psicanálise, entretanto, nos propicia um certo apaziguamento face a essa angústia, quando nos ensina que a farsa tem um tempo nesse jogo indomável do inconsciente.Ele tarda, mas não falha, no tropeço das repetições e dos atos falhos, não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe... Como dizia Walter Benjamin, "a história não deve ser vista como o fluxo dos acontecimentos, mas como algo que arranca do fluxo."

segunda-feira, 23 de abril de 2012

PINA E O SER

Acho pobre dizer que fui assistir a um documentário. Pina não pode ser definido só assim. É mais justo dizer que fui assistir a uma homenagem extremamente sensível, prestada por aqueles que tiveram o privilégio de conviver e aprender a se expor com Pina Bausch, uma força desbravadora que ampliou os horizontes da linguagem artística e cultural,através de suas ousadas e intuitivas experimentações. Alguém que se propôs a romper,através de sua arte,com os códigos habituais e consagrados.É importante frisar aqui, que as subversões por ela produzidas não foram feitas apenas na dança. O sentido de sua obra é bem mais abrangente, pois tem a ver com a poesia e acima de tudo, com a vida. Basta ver a citação primordial dela:
“Se as palavras pudessem expressar a vida, não precisaríamos dançá-la.”
Ou seja , é à precariedade da palavra que Pina nos remete. No dicionário, precário é ”aquilo que é pouco estável, incerto, frágil, caráter ou estado do que não oferece estabilidade e segurança”, algo, portanto, que se alinha ao que é humano, ou melhor dizendo, aquilo que é relativo à existência do eu. Somos precários de nascença. Carecemos de outros recursos que nos salvem de nossas misérias existenciais. A espontaneidade da criatividade artística é a possibilidade de um certo desvelamento da existência, da quebra de um diálogo sem som consigo mesmo. Dizia Freud que as pulsões são grandiosas em sua indeterminação e que o corpo concebido pela psicanálise funciona como potência dispersa para as intensidades. Pina Bausch, com sua arte, mostra, freudianamente, que não basta ser um campo de forças. É preciso encarná-lo. É com corpos fragmentados e não com uma totalidade organizada que ela trabalha em sua tentativa de expressar o humano, o sensível.
A homenagem maior que a trupe de Pina promove, é a prova de que confrontado com o Ser, a atitude do homem deve ser de agradecimento, de um “espanto admirativo”, como diz Hannah Arendt, ao falar da análise da consciência em Heidegger, em seu livro "A Vida do Espírito". Segundo ele, o eu misturado às atribulações da vida social, preso a uma linguagem repleta de clichês necessários para a comunicação , se confunde em um mundo externo bem distinto do si. O autêntico, o eu fundamental, se perde. Hannah endossa Heidegger : “Só através do espírito do homem chamado pelo Ser, pode-se transpor para a linguagem a verdade do Ser. “
Todos os depoimentos dos artistas que trabalharam com essa extraordinária mulher, dizem respeito a essa transposição e à expansão de suas potências.
Impossível, aqui, não lembrar de Clarice Lispector, cujo desafio maior na literatura parece ter sido, também, o de ultrapassar as limitações impostas pela palavra , tentando tocar o intangível. “Sou obrigada a procurar uma verdade que me ultrapassa. Quem se indaga é incompleto”
O mundo das aparências tem o ímpeto de se apresentar através do óbvio. Somos convocados por ele a falar. Temos necessidade de explicar e justificar com palavras o que vemos, enquanto que os chineses pensam com imagens atreladas a um signo, vide sua escrita.Essas linguagens, mesmo em suas diferenças, precisam do concreto.A experiência estética, ao contrário, é aquela que transita na obscuridade, na retirada do espírito para um lugar de abstinência do entendimento ou de uma ausência de razão, que permite ao sensorial se manifestar. Quando escuto uma ópera, por exemplo, choro, mesmo sem entender determinadas palavras. Cézanne dizia ser impossível para o espectador caminhar por onde ele havia caminhado. Acho que assim fez um amigo sábio que encontrei ao sair do cinema: “Não entendi nada, mas achei belíssimo”. Perfeito. A função da razão é dar conta. Porém, só o sensível tangencia, só o afeto modifica o afeto. Eis o paradoxo: o discurso é a maneira de apropriação do humano e, ao mesmo tempo é a possibilidade de sua alienação, já que o distancia de outra ordem de introjeção.
Assistir “Pina” e não fazer uma conexão com o processo analítico é impossível. O inconsciente está presente o tempo todo nas expressões de espanto, choque, alegria, amargura e dor. Muito mais do que a arte em si, o filme fala sobre a entrega, a experiência do corpo nas paixões, a obstinação, as inquietações e a disciplina, a paciência com as diferentes temporalidades e ritmos, o que o aproxima (e muito) das vivências de uma análise.
“ Pina” é uma lição de vida, mas dela só podem participar os que não a temem.

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terça-feira, 20 de março de 2012

"SHAME" E AS TREVAS DA COMPULSÃO

Joseph Conrad e seu belíssimo “Coração das trevas", um dos livros que mais me impressionaram na vida, abriram a coluna de José Castello nesse último sábado. E por cúmulo da coincidência, ele estava vivo nas minhas entranhas, pois acabara de assistir a um filme que me colocou direto, como aponta Castello, “frente a frente, de modo tão frontal com a selvageria que, inconscientes, carregamos dentro de nós”, as nossas “partes malditas” abordadas em outro artigo desse blog.
"Shame", o filme, é avassalador. Profundamente incômodo e concreto. Suas imagens nos levam a lugares internos absolutamente inquietantes, até porque ligados àquilo que não se pode tocar, ou seja, o tabu. Li algumas críticas excelentes, mas que obedecem a outros trilhamentos. É sabido que nunca assistimos ao mesmo filme e aqui cabe o olhar que vem da psicanálise.O tema é muito freudiano e rico, para além de uma metáfora do vazio que assola esses tempos viciados em sensações. Estou lendo um livro chamado "Sociedade excitada",do filósofo alemão Christoph Türcke, num grupo de estudos da psicanalista Jô Gondar, em que ele diz que "hoje há uma compulsão `a ocupação e à emissão e que a partir de um determinado nível de excitação, as sensações devem tornar-se aquilo que as faz identificadas como tal e apenas aquilo que é forte o suficiente e não se depara com uma região anestesiada , poderá, doravante, preencher os requisitos da sensação... Surge a suspeita de que a sensação no sentido de "percepção por excelência" não mais se expandiu. " Ou seja, é do trauma que Türcke fala aqui e parece que só diante dele é possivel sairmos da letargia. Diz ele, também, que "segundo Freud, a pele ou membrana, se encontra em permanente adaptação ao mundo exterior, até que por fim ela se encontra tão calcinada pelo efeito da estimulação, que se torna dura e inorgânica,morre, para que todas as camadas mais profundas do organismo sejam poupadas do mesmo destino. A "casca" é , portanto, pele morta, endurecida em legítima defesa, contra a sobre- excitação que vem do mundo exterior. "
O diretor, porém, não se contenta só com esse enfoque, ele vai além. Suspeita-se que uma cegueira maior atinge as retinas que se chocam diante das cenas que se arrastam na tela, ligadas à perversão, ao obsceno, ao horror e no cerne de tudo, ao incesto.
Brandon, o personagem principal, visceralmente vivido por Michael Fassbender, é um não sujeito, assujeitado que é à compulsão sexual. Bem sucedido profissionalmente, bonito e sedutor, ele é fixado , na sua trágica existência, em sexo. No meio do trabalho tem que ir rápido ao banheiro para se masturbar e passa as horas livres conectado a um arsenal virtual pornográfico que, supostamente, o preenche. Não consegue transar senão com prostitutas e mantém um método rigoroso,obedecendo à rituais diários na sua rotina inquebrantável.Acorda, bebe algo, toma banho e vigorosamente se limpa. Com o mesmo casaco, sai, pega o metrô, onde seu olhar vazio só é descongelado quando assedia e é assediado , quando joga o jogo voyeurista que tanto conhece. O espectador é exaustivamente inserido nessa rotina , numa sucessiva compulsão à repetição. Ouvi vários resmungos e até um “que filme chato”. Ouvi, sim, a insuportabilidade do vazio imposto pelo cineasta, Steve McQueen.
Isso rende um bom tempo do filme, até que Brandon uma noite chega em casa e vê que seu apartamento foi ocupado. No banheiro, uma mulher nua joga uma toalha nele e diz. ”Estava com muitas saudades de vc”.
A partir de então, pela intimidade que permeia a relação, o espectador fica se perguntando quem é aquela mulher que, visivelmente , por seu caráter invasivo, produz nele um enorme desconforto.Ela implora para ficar e diz que não tem para onde ir. Ele acaba cedendo e ela fica. A princípio, o espectador desavisado desconfia, mas não sabe, verdadeiramente, de quem se trata, pois as cenas revelam uma cumplicidade, uma intimidade excessiva, de outra ordem. A partir de um convite feito ao chefe , fica claro que Sissy é irmã dele. A invasão anunciada desde a sua chegada, vai, progressivamente, se expandindo, seja pela desordem no “casulo” virado do avesso, seja pela falta de privacidade de Brandon de praticar seus rituais. Ela o surpreende em pleno ato masturbatório. Os gestos de desespero e impulsividade, logo revelam, também, a compulsividade dela, assim como a afetação de Brandon diante daquela Presença. Ao ouvi-la cantar num bar, ele chora e ao vê-la na transparência de sua devassidão, transando com o chefe dele, que é casado, nos primeiros minutos de conhecimento, Brandon é só dor. Outras perguntas, então, passam a insistir:
Que história atravessa aquelas vidas ? Qual o passado delas? Porque o filme se chama "Vergonha?"
É de conhecimento dos psicanalistas que na base de qualquer compulsão está a angústia e que no solo da constituição de um tabu encontra-se a renuncia à satisfação de um desejo .Entretanto, essa renúncia que se expressa em um ritual feito de diversas privações, não é suficiente . O desejo de transgressão parece ser tão poderoso, que, para impedi-lo de surgir novamente, é necessária uma força suplementar, completando o esforço repressor contido no cerimonial de interdição. Essa força demandante, que pede mais e mais, faz parte de um tipo de consciência, produto do sentimento de culpa a que Freud se refere em "Totem e Tabu":" É possível falar de uma "consciência moral" e após um tabu ter sido violado, de um senso de culpa- tabu...Essa consciência pode ser descrita como uma "consciência angustiante." , onde podemos incluir a vergonha.
Para além de todas as abordagens possíveis de "Shame", a hipótese de ligar a angústia que reduz a existência de Brandon a um sofrimento devastador por conta de uma relação incestuosa com sua irmã, me parece a trilha mais instigante a seguir. É algo que ele tenta inultilmente apagar, seja correndo sem destino pelas ruas, gastando o excesso que o perturba, seja livrando-se dos objetos que compõem seu universo íntimo.A compulsão é a sua modalidade de fuga, de apagamento, como o fazem todos os viciados e compulsivos.
Após fracassar na tentativa desesperada de se envolver com uma mulher que ultrapassa algumas de suas barreiras defensivas, solidamente estruturadas,Brandon se entrega aos desvarios do submundo que serve de cenário para sua compulsividade embriagadora. Nesse ínterim, não atende aos apelos de sua irmã; tudo que quer é aniquilar a angustiante insistência pulsional que o invade. Ao sair do torpor anestésico que se encontrava, ouve a voz dela ao telefone chamando-o. Corre para casa e encontra Sissy mergulhada num mar de sangue, após fazer mais um entre tantos cortes já existentes na carne viva também marcada pela dor e pela punição, enquanto que a alma de Brandon se dilacera em pedaços.
O filme acaba no vazio , deixando no espectador a sensação de que o personagem não tem outra saída a não ser repetir, repetir, repetir..trazendo à tona a trágica dimensão da existência de um homem, não apenas contemporâneo, mas de um homem que sofre.
"Shame" ou "Vergonha"é um filme que faz sangrar almas.


COMENTÁRIO:
É amiga, seu texto é preciso e belo. A questão da vergonha (que nosso velho Freud já havia trabalhado com inteligência nos "Três Ensaios") foi muito bem colocada. A vergonha é uma das forças da moralidade que se levantam contra a realização das puulsões em sua versão perverso polimorfa... e isso se liga ao tabu, em sua versão trágica. Realmente, nosso Brandon era apaixonado pela irmã e isso doía-lhe muito, encravado (não sublimado) que estava em sua alma, sem elaboração adequada. E tome sexo, com tudo e todos,as condição de não se envolver e amar!!! Pesado. Na última cena aquela muulher que já havia aparecido parece ainda mais com a irmã e o olhar ressabiado de Brandon, cansado, diz de seu deserto. P)oderia ele se interessar de outra maneira por aquela mulher? Não sabemos. Mas na clíniica acompanhamos as torturas... e desesperanças.
Simplesmente magníficos, seu texto e o filme. Bjs.
Luiz Felipe Nogueira de Faria

terça-feira, 13 de março de 2012

ENFIM SEREMOS SALVOS:
TEMOS UM NOVO MINISTRO DA PESCA

João Bosco Araújo*


Ainda não era Brasil, mas simplesmente terra sem dono, porque índio habita e vive sem se sentir dono, e depois, a partir do século XVI, terra-colônia dos portugueses- proprietários e, tanto aí quanto antes, ora uns, índios, ora outros, portugueses, já conheciam os peixes e os pescavam e os comiam, sem que tivessem Ministro da Pesca ou dele sentissem a falta.
E assim foi por séculos e séculos, até os nossos dias, porque nem índios, nem portugueses, nem brasileiros, jamais tiveram aquele lampejo de gênio, aquele insight, que lhes permitisse a clarividência de que, em se criando o Ministério da Pesca, aí sim, teríamos a bíblica multiplicação dos peixes, a saciar e fartar o famélico apetite do nosso povo.
Nada a reclamar quanto à demora do nascimento de tão brilhante idéia. Afinal, não é em qualquer sociedade, de índios, de portugueses ou de brasileiros, e nem em qualquer século, que há de surgir um gênio do porte e da fecundidade do nosso Lula, prova concreta e irrefutável de que fala a verdade o povão, quando diz que Deus é brasileiro. Se não o fosse, teria talvez permitido que o Homem tivesse nascido, quem sabe, na Croácia, ou mesmo na Macedônia, ou melhor, no Haiti que, com ele lá, certamente não estaria a enfrentar as agruras que hoje enfrenta.
E a pergunta não se deixa calar: como foi possível ao Brasil, subsistir por tão longo tempo sem um Ministério da Pesca? Difícil responder, porque o assunto é por si só extremamente sutil e complexo. Por exemplo, tente o caro leitor descobrir se o tal ministério é mais importante para os peixes ou para os pescadores. Ou ainda, quem sabe, por ser polivalente, pode também valer como moeda de troca, nos arranjos, acordos e negociatas que se processam nos subterrâneos da política, neste caso, sempre com “p” minúsculo.
Não há de ser difícil entender quão duro e complicado terá sido encontrar o homem certo para assumir os deveres e encargos inerentes ao comando de tão importante ministério, cuja complexidade bem aparece, quando se atenta para o fato de que aquele (ou aquela) que viesse a ser o gerente (ou a gerenta) da empreitada, teria de harmonizar águas, peixes e pescadores, elementos tão diferentes, por suas vocações: as águas não querem ser violadas, os peixes querem viver em paz e os pescadores conspurcam as águas e matam os peixes.
Mas, enfim, abriram-se os caminhos e apareceu o homem certo para o lugar certo. Nenhuma importância tem o fato de que, como o próprio falou, não saiba enfiar o anzol na minhoca, uma vez que certamente é pessoa abençoada e inspirada, parente de dois santos homens, Edir Macedo e R. R. Soares, que, por acidente, não se toleram.
Como se isso não bastasse, ainda há a considerar que o escolhido, por mera coincidência, é também Senador da República, figura de proa de um partido político (o inexpugnável PRB), líder evangélico, capaz arrebanhar os votos do rebanho (redundância verbal e política) para abrigá-los no aprisco onde um molusco manda com mão de ferro.

*Diretor Executivo do Amazonas EM TEMPO.

quinta-feira, 8 de março de 2012

COMENTÁRIO DE FILME

A Separação de Asghar Farhadi,
Por Luiz Felipe Nogueira de Faria

Em mais um enérgico e delicado trabalho, o diretor do aclamado “Procurando Elly” nos convoca uma vez mais a pensar sobre a questão que concerne aos efeitos dos ditos e (principalmente) dos não ditos nos encontros que cada um realiza consigo mesmo e com os outros, no que isso implica em compromisso com a palavra e com os atos, com as escolhas contidas nas crenças e com o desejo embutido nas opções éticas. No limite, uma discussão sobre os impasses do humano na cultura, nas relações tecidas no dia a dia, sobre a ambiência que promove as dores e ódios, enfim, sobre o compromisso com a verdade, ela mesma um objeto sempre mutante e arredio às posições que buscam a afirmação de naturalidade e neutralidade.
É possível propor que um dos vários impactos do filme diz respeito ao fato de todos os personagens que compõem a trama se mostrarem frágeis e, de certa forma, solicitando acolhimento. Ao mesmo tempo, todos são duros nas ações e nos enfrentamentos, exceção talvez das crianças, cuja perplexidade e ternura deixa entrever um futuro menos sombrio, embora elas estejam expostas, e de forma cruel às intempéries que caracterizam os (pesados) conflitos que se desenrolam, assim como a figura do pai idoso e adoentado, macabra imagem da decrepitude e da dependência ao outro.
O filme começa com um plano curto no qual alguns documentos de identidade são fotocopiados, deixando entrever rostos e nomes ainda por ganhar corpo e densidade. Prossegue com um plano médio fixo dando a ver um casal em litígio com cada um dos cônjuges expondo seus argumentos em torno da idéia de se separarem. A câmera se posta do ponto de vista de um juiz que deverá arcar com uma sentença decisória a respeito das reivindicações apresentadas. E esse juiz interroga o casal, especialmente a mulher (Simin), sobre os motivos da reivindicação que em última instância é sua. Ela argumenta que prefere ir para o exterior (o visto foi conseguido) porque será melhor cuidar da filha em outras circunstâncias... (a que circunstâncias ela se refere?) O marido (Nader) diz que tem que cuidar do pai velho e que isso já emotivo suficiente para tomar outra posição. Seu apego ao pai é pungente, mas logo ficamos sabendo que a filha do casal é também motivo de litígio.
O juiz parece adotar o ponto de vista da tradição e se alia aos valores que indicam a conduta honrada de Nader, como pai e esposo. Tudo permanece em suspenso e inconcluso e ambos se retiram. Ocorre que nós espectadores já fomos fisgados e comprometidos, pelo simples fato de que na maior parte desta longa cena Simin e Nader a nós se dirigirem, com seus olhares e pedidos. Ambos apresentam falas razoáveis e aceitáveis, ambos sofrem e exigem o reconhecimento de seus motivos e aspirações. Solicitam nossa escuta e nossa afetação. Aí as identidades não mais se reduzem a formalidades paralisadas num retrato sem vida. Ao contrário, se fazem intensas tomando os corpos e transgredindo as medidas ditas racionais.
No prolongamento da trama surgem outros personagens não menos sofridos e carentes de reconhecimento, inclusive social. Também mais um casal, não mais de classe média (como Nader e Simin): Hodjat, que aceita com muitas dúvidas o trabalho de cuidar do pai de Nader e Razieh desempregado e ludibriado (assim parece) pelo antigo patrão. Ambos afeitos à tradição religiosa (o alcorão é sua verdade e referência ética e até moral). Nesta família também há uma criança (bem mais nova) e, como veremos, silêncios tão necessários quanto perigosos...
Por conta do que poderia ser classificado como um “mal-entendido”, mas num contexto onde há uma perda dolorosa para Hodjat e um ato impensado e violento de Nader, estes dois casais estarão frente a frente nos tribunais, no hospital, em suas casas, no colégio onde uma das crianças estuda. Sempre em litígio, numa atmosfera acusatória onde as piores culpas funcionam como peçonhas mortais, seja para salvaguardar a unidade dos casais, seja para desnudar ainda mais os restos que insistem em esgarçar as carnes mais doloridas desta suposta unidade.
Um ponto a discutir é: se há necessariamente em toda a palavra um lugar de silêncio, e se em todo silêncio há alguma fala que implica o irrepresentável, os encontros humanos, inclusive os mais potentes, não poderão escapar de seus avessos, fato que marca a positividade do (não/mal) dito para os sujeitos. Nesta história de gente comum observamos que todos mentem para si e para os outros, todos escondem e precisam esconder algo, todos se deixam capturar no sintoma da culpabilização a todo preço (seriam essas as “circunstâncias” que Simin queria evitar no seu intento de sair para o exterior?). Ao mesmo tempo é no atravessamento das trilhas que constituem esse sintoma que algo diferente poderá se fazer. Nesta linha, a ternura sábia das crianças (Termeh e Somayeh), é bastião de saúde e da alegria/criação possível. Quando os adultos se permitiram abandonar a rede de orgulhos e recalques e funcionar com a coragem das crianças alguma coisa da ordem da verdade pôde acontecer.
É sempre interessante ver um cinema que se esforça em presentificar os afetos e a complexidade das histórias sem apelar para o maniqueísmo, sem as clássicas dicotomias bem/mal, verdade/erro normal/patológico, e, no caso específico dessa história, moral religiosa/moral laica. Muito bom constatar que os movimentos de câmera flagram suspiros, tensões, intensidades indizíveis e não se contentam em contar com imparcialidade uma história, mas se esmeram em nos envolver, inquietar, forçando nossa presença interessada. Todo o elenco está afinado, as crianças com semblantes maravilhosos... Teria Asghar Farhadi desejado contar esta história do ponto de vista das crianças?
“A Separação” ganhou o Oscar. E daí? Titanic também ganhou . O que fica, mais do que a premiação e o sucesso é a grandeza de expor, a partir de um estudo específico de uma certa atmosfera cultural , questões que a ultrapassam em muito, obrigando-nos ao pensar. Resta-nos agradecer a generosidade deste gesto.

quarta-feira, 7 de março de 2012

ANGELINA JOLIE E A SAPUCAÍ

Fevereiro é um mês dionisiaco no Brasil, pelos dias ensolarados que iluminam esse excesso pulsional dos trópicos, intensificado pelo clima carnavalesco que invade o país. Como disse Bataille a respeito do erotismo,"desse transe de órgãos que desarruma uma ordem, um sistema."
A sexualidade desabrida dos brasileiros espanta os estrangeiros,criando
sempre um imaginário de possibilidades hibridas, a partir dessa miscigenação persistente e pelas manifestações explosivas que impregnam as narrativas e relatos dos viajantes, desde os primeiros que aqui chegaram. Se Hemingway dizia que Paris é uma festa,o que diria ele dessa orgia coletiva que toma de assalto milhões de pessoas , desse ar quente que traz uma "luxúria pegajenta" (Gilberto Freyre), em oposição ao frio seco e árido de outros polos do planeta?
Nesse contexto carnavalesco, o corpo mais do que nunca é um lugar, uma espécie de palco onde se encenam múltiplos eventos. As fantasias se materializam e as máscaras correm à solta."Seja vc quem for, seja o que Deus quiser...." já dizia uma velha canção. O carnaval libera vários outros que guardamos dentro de nós.Só que tudo acaba na quarta -feira de cinzas. Ou não?
No contexto surreal em que vivemos hoje, onde a ficção cada vez mais se confunde com o real,o que sobra, por exemplo de verdade em um corpo? Aliás, nunca se falou tanto em corpo e nunca faltou tanto corpo. Farsas, montagens, próteses , sim, é com o que mais nos deparamos.A maioria é regida pelo "princípio do dever", pelo "eu tenho que ", provenientes das exigências estéticas que vem do mundo exterior e que produzem um adestramento rígido do corpo, sendo este submetido a uma disciplina férrea ligada ao "princípio do desempenho" , que tanto agrega quanto segrega, inclui ou exclui ao mesmo tempo.Quem consegue escapar dessa homogeneização e se libera desse "dever ", tem que estar preparado para pagar o preço da autonomia. Existe uma frase de Merleau-Ponty que é bem apropriada a essa perspectiva: "Se se trata do corpo do outro ou de meu próprio, não tenho como conhecê-lo senão vivendo-o, quer dizer, retomar por minha conta o drama que o atravessa e me confundir com ele."
Lembro-me de uma cena fantástica ao final do filme "Ligações Perigosas", em que Glenn Close, numa interpretação soberba, senta-se diante de um espelho e começa a retirar a maquiagem da Marquesa de Merteuil e a expressão que surge é a do desespero, da infelicidade e horror que aquele excesso excondia.A dura experiência com a falha que divide a superfície da profundidade corporal, é encenada magistralmente pela atriz. A distância fria que a separava de si própria é percorrida e suprimida nesse des-mascaramento e a realidade de sua monstruosa existência se revela.
O simbolismo da cena é forte, porque todos usamos máscaras.Das mais diversas formas e circunstãncias.Muitas vezes encobrimos a raiva com um sorriso, a dor com o humor, a amargura com uma piada, a decepção com o cinismo e por aí vamos...O que dizer, então, das máscaras dos políticos corruptos, com seus sórdidos sorrisos enquanto roubam descaradamente?
Haja máscara.
Nesse carnaval mesmo, um fenômeno que vem crescendo pouco a pouco, teve o auge de sua excerbação. Além das figuras hilárias de alguns blocos, o que mais me chamou a atenção foram as "botocudas e preenchidas". Angelina Jolie não veio ao carnaval do Rio e portanto, não pode imaginar que foi a inspiração mais intensa nas imagens midiáticas.Sua boca foi onipresente. Do baile do Copacabana Palace à Sapucaí, quase todas asmulheres desfilavam bocas e maçãs salientes em rostos protéticos e patéticos. A galera do Saara, ano que vem, pode faturar horrores, vendendo não só máscaras , mas bocas. Quem sabe, peles avulsas, também.
Nas breves zapeadas televisivas que dei, resguardada pelo sossego da Serra da Mantiqueira, confesso que ao cabo de um tempo estava exausta, pois aquelas caras esticadas e ampliadas como num filme em 3D pareciam alucinações , sem uma expressão que as diferenciasse. Rostos homogêneos e estereotipados, corpos siliconados em sua exibição farsesca.
Homens e mulheres que perderam o limite entre o ridículo e o real do tempo. Corpos que já foram desconstruídos e capturados pela imagem de um ideal que, cada vez mais, os desapropria de suas verdades temporais.
Pobres mortais!! Pobre exército de Brancaleones ,quixotescamente lutando contra os moinhos de vento.Xô, morte...

quinta-feira, 1 de março de 2012

IMERSÃO

IMERSÃO Encontro-te boquiabortado Sobre o espaço incontido de mim Percebo o desencontro afetivo-conceitual da nossa associação impermanente Remonto cenas pré-edípicas do amor que oscila, oscila Identificando / Desidentificando Percorro o tempo imemorial entre padecimento e êxtase. E.M.M.