segunda-feira, 4 de abril de 2016

O RESSENTIMENTO COMO SINTOMA SOCIAL



Sobrevoa o pais uma pergunta que não quer calar: de onde vem tanto ódio? Amizades desfeitas, intolerância à diferença, discussões atravessadas de agressividade, transbordamentos de afetos que não podem ser resumidos e muito menos simplificados. Espanta-me a ausência absoluta de uma escuta ou de uma fala psicanalítica, que coloque o povo brasileiro no divã.  Muitas coisas estão fora da ordem e do alcance mais significativo do que acontece no íntimo de pessoas massacradas por informações contraditórias, que geram um caos psíquico que não propicia um saber de fato e sim, opiniões advindas de um fanatismo improdutivo e ignorante, entre o “lado de lá e o lado de cá”. Sabedoria é uma palavra rara nos dias de hoje. O país foi assaltado de várias formas, inclusive em seu bom senso e lucidez, que certamente devem estar em algum banco suíço. O povo é que foi golpeado, usurpado em seus diretos de cidadão que paga impostos altíssimos e não tem um sistema de sáude e de educação dignos. Haja visto o que acontece no mometo com epidemias gravíssimas , muitas vezes causadas por falta de saneamento básico nas regióes mais pobres do Brasil. O olhar que os estrangeiros tem do país que vai sediar um dos maires eventos do mundo é de horror. Certos aspectos humanos estão mais ativos do que nunca. Por exemplo, que tal tentarmos ver esse ódio que grassa, como algo que subjaz a um ressentimento histórico que habita a alma do povo brasileiro? Quantas esperanças frustradas, quantos crimes impunes, quanta injustiça e dor com perdas, quanto sufoco passado em filas intermináveis, quanta falta de cuidado do governo com seu povo sofrido? Quanta banalização, quanta espera na porta de hospital, quanta luta por um colégio para o filho, quanta violência, quanta insegurança, quanto medo, enfim, isso tudo que acaba tornando a vida sem brilho, desesperançada. Essa é a porta de passagem para a idealização e o ressentimento, para a mágoa de quem se vê logrado por alguém em quem deveria poder confiar. “O ressentido não pensa: eu me enganei e sim: fui enganado.”( Kehl, 2004, pag 49 ). Embutida na palavra ressentimento, está a idéia de que o dito não foi validado. Algo prometido não foi cumprido. É o que Ferenczi, que ampliou Freud, chamava de “desmentido”. E se tomarmos essa premissa no âmbito do sintoma social em curso, onde um sistema assistencialista  afirma que “nunca antes na história desse país determinadas coisas aconteceram”, em que “dádivas” foram ofertadas como moeda de troca por votos, o que esperar agora que delatores desesperados com suas próprias peles entregam o ouro dos bandidos?  Tudo isso e mais alguma coisa desaguou num ódio intenso e incontido. É o ressentimento como defesa necessária para a integridade narcísica do próprio eu. Como um refúgio protetor contra o desamparo iminente , o ressentimento impede a desestruturação do psiquismo face ao excesso de ódio. Esse afeto se manifesta por termos que abrir mão de tantas idealizações. O momento atual é propício a esse “derrame dos res-sentidos”, já que ele funciona como um catalisador de vivências muito mais profundas e pessoais, arcaicas talvez, que são despejadas nesse lamaçal político .A memória de tempos não tão distantes em que ficamos assujeitados aos horrores de uma ditadura, faz com que o pavor do retorno das mesmas condições se atualize. Ainda não “inquecemos”, como diz Renato Mezan. A ferida não está de todo cicatrizada, principalmente para os que pagaram o preço mais alto, a tortura e a morte de pessoas queridas. Sentimentos  de vingança estão à flor da pele e como sempre , onde há ressentimento há  um devedor, um outro  que deve pagar. E quanto a quem é devedor, há uma multiplicidade de divergências. As paixões permeiam as opiniões e o resultado disso é uma grande cisão destrutiva.Se pensarmos historicamente, tivemos um período de estabilidade econômica e política, mas, socialmente, a violência nunca deixou de existir. E quando falo de violência, não me remeto só àquela que é física, mas a todos os aspectos que envolvem o desrespeito ao ser humano. O que, obviamente, demonstra que o ressentimento sempre está presente. Alguém deve algo a alguns. O ressentido acha que perdeu, injustamente, porque lhe tomaram.  É a vítima que foi prejudicada que reivindica o reconhecimento que lhe foi recusado. Esse é o sentimento que reverbera nas panelas e nas janelas, é ele que ressoa nos gritos de “ladrão”, no piscar das luzes a cada vez que há uma escuta de discursos vazios, de inverdades repetidas à exaustão por essa ditadura partidária que desonrou nosso país. O ressentimento autoriza moralmente atitudes que a moral condena sob o estigma da maldade, prestando-se bem à simplificações dos conflitos que se instalam. Diante da imoralidade política atual, não há constrangimentos.  O povo que urra nas ruas considera-se acima da hipocrisia social. da corrupção e do cinismo vigentes. E se sente livre para clamar: ou somam ou sumam.

Angela Villela
Psicanalista


prosafreudiana.blogspot.com 

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

GODARD E O ATAQUE À PARIS


Saio do cinema com a sensação de que havia assistido a um filme inusitado, que apesar de parecer um labirinto onde algumas vezes me perdi, ao mesmo tempo me emocionou profundamente. Tive a nítida sensação de que por trás daquela estranha mistura de colagens, havia algo de genial. Um quebra cabeças desconfortável a ser experimentado.  Havia lido uma crítica que dizia não haver a intenção que se compreendesse absolutamente tudo o que é exibido, tanto que o próprio Godard pediu que nem todas as falas fossem traduzidas na legenda – a confusão, ou a dificuldade de compreensão, faziam  parte da experiência que é o próprio  filme. As imagens são aleatórias e instigam à compreensão, mas à   medida em que me entreguei aos sons, gestos e cores, relaxei no sentido de não tentar definir e interpretar nada. Entreguei-me aos espantos e me deixei surpreender pelas sensações.  Afinal, o aparato tecnológico é uma das vertentes da crítica de Godard. A humanidade está viciada nas telinhas de captura, que tornam tudo previsível e confortável , o que estabeleceu  uma única forma de olhar que não consegue ver e entender certas desconexões. Como psicanalista, portanto, ver o filme foi um exercício familiar. Afinal, é com essa multiplicidade de linguagens que me deparo na clínica o tempo todo.                                      
Em sua crítica no Globo a respeito de “Adeus à Linguagem”, Ruy Gardinier destaca “que esse questionamento do olhar viciado, no filme é feito através de uma colagem brilhante de citações (Proust, Rilke, Valéry, entre muitos outros) e é operado principalmente através do uso não convencional do 3D, como também  pela formação de duas imagens simultâneas, uma em cada olho, que confundem a percepção e obrigam o espectador a descobrir por si mesmo o que está sendo visto.” Na  minha opinião, a genialidade do filme está exatamente nessa possibilidade que ele cria de instigar o espectador a sair de uma linguagem convencional para uma outra absurda, surrealista, kafkiana. O discurso na tela não pode ser controlado e muito menos traduzido. O desconforto no cinema é evidente. Pessoas reclamam e saem. Ruídos permanentes são ouvidos, porque não há escuta para a subversão proposta. Imagino a ironia de Godard ao ver  os viciados  na linguagem formal, inquietos em suas cadeiras. Gardinier concluiu que “Adeus à linguagem” é seu filme mais radical, e toda sua radicalidade é traduzida em esplendor e fascínio. Pois trata-se de espreitar, de seguir o movimento do filme, mas de modo algum tentar pensá-lo ou defini-lo. 
E porque coloco Godard junto à Paris do dia 13 de novembro?                 
Que relações  pretendo estabelecer? Após o choque brutal advindo dos ataques dessa sexta feira negra, li e assisti a milhares de reportagens, entrevistas  e opiniões sobre o que teria acontecido. São inúmeras as especulações de todos os angustiados, como eu, que tentam aplacar sua ignorância (no sentido de ignorar mesmo) com uma explicação mínima a radicalidade dos atos...Uma Guerra Santa em pleno século XXI ?              
O Estado Islãmico coloca para o mundo inteiro um enigma_: que línguagem é essa que é intraduzível, principalmente para o Ocidente? Que bases e princípios sustentam a barbárie que os impulsiona? Quando leio ou escuto a expressão “Luta contra o Fundamentalismo”, penso imediatamente na precariedade das mentes que supõem ter algum controle sobre a complexidade, o emaranhado, a mistura étnica, religiosa, tribal que subjaz ao termo.. Como Godard , o Estado Islâmico quebra, destrói, anula a linguagem óbvia. Todas as contradições possíveis que permeiam as relações humanas estão presentes na “morte da lógica “ trazida pelos adoradores de Alá. É impossível traduzir de uma linguagem para outra. Eles não só mutilam corpos , eles mutilam a fala. No final de “Alphaville”, o personagem Natasha diz: “Há palavras que não sei”. Ficamos  “speechlesses” , com milhares de hipóteses frágeis, já que a constituição psíquica dessas subjetividades é inacessível para a maioria da humanidade. O que faz milhares de jovens do mundo inteiro serem abduzidos na internet pelos gênios do mal? O que os atrai a ponto de se tornarem carrascos que cortam cabeças de pessoas inocentes? O que eles encontram lá, que falta na cultura em que foram criados? Seguindo Saussure, um estudioso da linguistica,  é necessário considerar “que toda língua começa a penetrar em nosso espírito através do discurso” (SAUSSURE, In: ELG 2002, p. 105).Que força estranha é essa que faz com que eles amarrem bombas ao redor do corpo e se explodam? É possível entender e responder algumas dessas questóes? Com todo o esplendor das tecnologias de ponta, estamos impotentes diante da tragédia em Paris, Não só com a destituição do direito legítimo de ir e vir dos franceses e de nós turistas, mas, também, com a destruição do belo, das  obras de arte que fazem parte de um acervo que pertence há  séculos a toda humanidade, quebrado a marretadas. Certamente, não haverá saída enquanto as forças conjuntas que se unem para tentar “acabar com o mal”, não se debruçarem sobre a tradução dessa linguagem. Não há tanques, aviões super, mega potentes, drones. seals, que deem conta desse horror. dessa cultura homicida que permeia tradições seculares. Oito ou nove terroristas puseram o mundo em alerta vermelho.
O problema não está aí. O problema está no Homem.   Nas suas fragmentações e cisões, nas suas contradições, na  sua ânsia de poder,nas suas partes malditas e na incapacidade de governá-las . Isentemos Deus.                               
Já estava difícil para nós, brasileiros, lidar com a inversão da lógica dos loucos que nos governam. O mar de lama em Mariana é de um espanto simbólico impressionante. O Rio Doce ficou Amargo. É duro ver o arrastão provocado pela sujeira política e a miséria do povo inocente desaguando no mar. E é o próprio ser humano, com seu ódio permanente à diferença, sua imperfeição patética, suas ambições malditas e desmedidas, que subjaz a todas essas barbáries.

Angela Villela 
Psicanalista

terça-feira, 7 de julho de 2015

O PT E A BRILHANTE INSTRUMENTALIZAÇÃO DO MAL


Agora sei... Há muitos anos atrás, um primo que deve ser descendente de Nostradamus, previu tudo. Foi detalhista, extremista e extremado nas suas colocações. Ele conhecia os meandros da política e do poder muito melhor do que eu e me disse:“Eles vão devorar o país. Eles  vem com um apetite, uma voracidade insaciável. Você vai ver"  Foi essa  a sentença emitida . Na época, não conseguiu me convencer. Eu achava aquilo terrorismo de direita, medo de ascensão de um lado e  queda do outro. Medo da mudança que eu vislumbrava, plena de esperanças e ele de ceticismo. Fui amplamente avisada do que ia acontecer. Mesmo assim continuei aferrada à certeza de que aquela era a oportunidade de uma guinada fundamental que o país precisava. Um outro ciclo que privilegiasse meus ideais de educação, saúde e justiça social. Afinal, ao votar, eu  tinha a opção democrática de escolher um partido que há anos lutava pela realização desses sonhos. Hoje, meu primo me ligou e diante dos fatos consumados e consumidos, tive que me curvar, admitindo minha ingenuidade, inocência e até minha ignorância frente a perspicácia dele naqueles tempos. Tive que socraticamente dizer: Sei que nada sei. Paradoxo.Comecei o texto dizendo que agora sei.O que sei? Na minha profissão, a questão da interpretação  é vital. Todo cuidado é pouco. Aprendemos que as  coisas nunca vem de um lugar só, mas de múltiplos lugares, portanto, um fato tem muitos ângulos possíveis. Nele cabem  variáveis intervenientes que afetam e determinam as interpretações do mesmo. 
Baseada nessa premissa, interpretei  de baixo para cima, de cima para baixo, pelas lateralidades e profundidades, todas as barbaridades praticadas por esses loucos inescrupulosos que se apossaram e assaltaram o meu país. Desses perversos  enganadores.  Ainda ontem mesmo, fiquei sabendo através de alguns pacientes jovens que estudaram horrores para conseguir uma vaga pós ENEM, que eles vão terminar o semestre na UFRJ sem ter noção do que irá acontecer depois de setembro. Sim, porque a Universidade só tem verba para se sustentar até lá. Os estudantes vão voltar para seus diferentes estados, sem eira nem 
beira. Como moram de aluguel, não sabem o que fazer. Rompem contratos? Continuam pagando, mesmo sem 
estar no Rio? Tem condições para isso? Como ficam as provas, os investimentos, a vida dessas pessoas e 
seus ideais?  Esse desgoverno promiscuo fez o quê para impedir esse caos? Enem ? Nem aí. Educação é 
luxo?  Segundo o ex-presidente Lula é lixo, porque ele próprio disse que não precisou estudar para 
chegar aonde chegou. Metáfora perfeita do Brasil, "o país da educação!"                                  
Aí vem o Jô Soares, até então figura queridíssima nesse país e se espanta porque o juraram de morte pela sua “encantadora entrevista” com a presidenta Dilma. Onde ficou a sensibilidade desse homem tão observador e culto para não perceber que na frente das telas de TV, existe um povo absolutamente 
indignado com a maior roubalheira e cinismo jamais vistos antes, dirigido por uma senhora que tem apenas 9% de aprovação?  O que ele foi fazer lá? Confrontá-la ou confortá-la? Liberdade de expressão? O povo também tem e o preço que ele pagou parece que foi tão alto quanto o que ele supostamente recebeu.  
O mal na politica, de fato, sempre existiu, basta olhar a história da humanidade, mas os arquitetos dessa construção bizarra exageraram. Elaboraram um projeto genial para ficar o máximo possível no poder, gerenciaram a pobreza com cestas básicas e atenderam, paralelamente, as necessidades básicas  do partido, extraindo das estatais  a forma de sustentação desse sistema que gerou uma ilusão de poder na população. A ignorância permaneceu, através do estímulo ao consumo  desenfreado das classes que sempre olhavam as vitrines e não podiam acessar os bens de consumo exaustivamente exibidos nas novelas e que agora, infelizmente, dão de cara com o mal estar e a ironia de não “poderem” de novo, pelo estrago causado pela  recessão. Tem esquema mais perverso do que esse?                 
Temos escutado máximas frequentes. Ah , mas corrupção sempre existiu . Nesse volume vivo? E isso, por um acaso, justifica essa podridão toda? Porque essa criatura que não me representa, já que não a escolhi, nos trata sempre como um bando de imbecis, que não tem discernimento para entender que seus discursos são insanos? Ou cínicos? Vendo agora uma entrevista com Domenico De Masi, sociólogo italiano, encontrei um certo apaziguamento para essas e outras perguntas que não calam. Porque não fazemos nada? Porque estamos desnorteados. Essa a palavra justa que nos define no Brasil. Sem norte mesmo. Navegando nas redes, urrando perplexos diante da avassaladora onda de perversão que nos colocou à deriva. Somos traumatizados diariamente.
E La Nave?
Va..... Fellinianamente   
Angela Villela

_Parabéns priminha pelo belo texto e entendimento do problema. Embora tenha sempre clamado e brigado por uma mudança social neste País,
antevi o insucesso do PT pela falta de quadro e incompetência de seus dirigentes. (Vide Lech Walesa na Polônia sem querer comparar caráter...). O que não contava é que All Capone fosse história infantil perto dessa quadrilha.
Beijocas

_Obrigado por me enviar estas belissimas mensagens,cheias de verdade e primorosamente redigidas
Atenciosamente,
paulo sergio lima silva | 

_ Angela
Acabei de ler seu texto...fantástico!!! Realista e verdadeiro.
Parabéns pela forma clara e objetiva que vc escreve.
Vou sugerir essa leitura a meu filho que comecará a votar no próximo ano.
Bjs
Glaucia

14:06 (Há 2 horas)
exelente texto, gostei muito
bem parecido com o que penso ( junto c milhões de pessoas perplexas )
beijos

Nelson Motta


Angela, querida,
Eu, como mts que prezam a cidadania brasileira, me solidarizo com o seu sentir, mas nos resta a esperança como nos indica Pandora.
Como vc bem sabe, nunca votei no Lula, já tivemos um pai dos pobres de 30 a 45 e a história nos mostrou o resultado dessa hipócrita demagogia. Portanto, ele não me emocionou e nem me convenceu. Infelizmente tenho que concorda com o seu primo, logo eu, que sou romântica, otimista e crédula. Enfim... chegou a minha época de ter um pai dos pobres, e eu que pensava que isso era coisa do passado, já  enterrado e só se mantinha vivo nos livros de história. Mas ao que parece ainda vende como água. Mts seguidores fiéis.
Adorei sua escrita, inteligente, criativa, comprometida,
Bjs
Bia 



sábado, 3 de janeiro de 2015

AS RENDAS NA POSSE



Bela roupagem a da presidenta na posse.Ela estava revestida em rendas. Tons pastéis, suaves, discretos, tonalidade bem diferente das cores fortes  que a esperam nas teias e nos outros tipos de rendas no seu segundo mandato.Aliás, impressionou-me a quantidade de “mulheres rendadas” nas inúmeras posses Brasil a fora. Chamou-me a atenção a predominância  desse tecido nos figurinos presentes. Tudo bem, renda é coisa fina, chique, mas ali parecia coisa de inconsciente coletivo. Como se  a finura nas aparências mascarasse o lamaçal ligado a "outras rendas".Ou seja, vestidos de renda e muita renda nos bancos suiços. 
Pensei em que medida a estética nas fotos se relacionava com a ética. Afinal, todo pensamento já está desde sempre, de alguma maneira, contaminado de algum sentimento, seja ele, admiração, indignação, estupefação ou depressão. E pensar nas rendas através de um olhar psicanalítico, faz, inevitavelmente, com que se capte outras estilísticas que não as propriamente visíveis. Penso na feiúra dos subterrâneos, por exemplo, na sujeira das trapaças. Há algo no feio que nos envergonha, que desperta nossos instintos mais básicos. O feio é aquilo que sobra quando a beleza se ausenta e está relacionado à desmedida, ao excesso, aos acometidos por desvios de caráter, à mentira, à injustiça, ao menosprezo  à inteligência alheia. Ter que ouvir que esse governo vai ser o da educação depois de 12 anos de total desprezo pelos professores e educadores desse país, começando pela retirada de um dos maiores defensores que existem da educação como meta, como princípio, o admirável Cristóvam Buarque, é no mínimo subestimar a paciência da população que acompanha a vergonha com que tal assunto foi tratado ao longo desses anos pelos governos petistas. Basta ver quanto faturam Vs.Excelências e comparar com a miséria paga a um professor que rala em sala de aula para manter-se e à sua família. Basta ver os aumentos absurdos que são dados aos altos escalões dos poderes judiciários, executivos e legislativos, apesar da crise em que vivemos. Compare-os à renda de um professor. E a Lei Magna diz que somos todos iguais. 
Recorro a Sócrates: “Todos os homens são mortais (premissa I);Sócrates é homem (premissa II),logo Sócrates é mortal (conclusão ).      
Da mesma forma,concluímos que não dá para acreditar que todos os trabalhadores estão submetidos a este tipo de lógica. As rendas são tecidas muitas vezes por mãos escravas, bocas sedentas e famintas de Mulheres Rendeiras que fazem delas seu ganha pão.     Que a presidenta reeleita sinta através da veste que lhe envolve o corpo, que "renda"é uma questão de injustiça grave nesse país e se aposse de um discurso mais verdadeiro face ao real, sem as falácias de sempre. 
O povo brasileiro, mais do que rendas e mais do que nunca merece respeito.
Angela Bezerra Villela

terça-feira, 19 de agosto de 2014

SOROPOSITIVIDADES


Elas vêm de todos os lugares.
Da Pavuna, de Xerém, da Vila, de Raiz da Serra.
Vem de trem, de ônibus, a pé e chegam ao hospital em busca do resultado de um simples exame de rotina ou de um teste de gravidez.
Vem saber se carregam dentro de si uma vida.
Nesse exato ponto, são surpreendidas.
Junto à resposta positiva da gravidez, deparam-se com uma outra ordem de positividade:
“Amostra reagente”.
“HIV positivo”.
O chão escapa, o ar falta e os ruídos de uma morte anunciada se tornam pouco a pouco ensurdecedores. A cena tinge-se de vermelho.
Uma estética que transita entre o horror e a mais absoluta negação se instala.
Traição, contaminação, disseminação passam a ser as palavras de ordem, pois a maioria foi contaminada por parceiros na relação sexual. Ódio e revolta fazem contraponto com um estado de perplexidade, onde o corpo escapa ao controle e mostra sua própria vida.
A notícia do HIV é uma experiência convulsionária. O chamamento da morte produz uma espécie de despossessão corporal  e instala uma anatomia fantasmagórica. Esse corpo atravessado por um vírus e por agentes químicos de alto teor, vira um corpo-velocidade onde metamorfoses aceleradas estabelecem uma outra cartografia. Um excesso de concretude demarca um novo modo de existência.  A revelação que atinge o portador cristaliza a sua existência numa nova categoria – a de aidético.
O material, portanto, que se apresenta para a clínica é profundamente rico em questões.
A que sujeito pertence esse corpo estranho?O que pode a psicanálise face ao que parece escapar à teoria?
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Os desdobramentos dessas e de outras questões, estão nos Cadernos de Psicanálise__ "Sonhos", editado  pelo Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro em 2013, com o título "  O HIV e a Atualidade da Psicanálise".
Esses 20 anos de trabalho e convívio com mulheres / Aids, levaram à criação de um grupo chamado  "Soropositividades".Através dele,estas mulheres tem apoio psicológico e são, também, beneficiadas com outras modalidades de ajuda. Foram"adotadas" e recebem mensalmente cestas básicas e suporte financeiro.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

INCÊNDIOS


Fui ver “Incêndios”, a peça.
 Confesso que resisti durante um bom tempo, porque o filme havia me devastado. Coração e retinas foram atravessados. Inexoravelmente.                                             
 Assim sendo, era como se eu tivesse medo de ver “profanada“ a grandeza da obra que  havia testemunhado , uma vez que não concebia como aquilo caberia na cena teatral, embora soubesse que essa era sua origem. 
Até que recebi um convite de uma amiga e fui ao  “Poeira”, atraída,  principalmente, por uma  Presença : Marieta Severo. Queria ver sua Nawal.                           
Segundo êxtase. Saio do teatro com um sentimento de urgência. Preciso ler, escrever, pensar, colocar em palavras essa experiência sensorial deslumbrante. Corpo e alma foram atingidos, esmagados outra vez e agora, de uma forma mais próxima. O palco é diferente da tela, estamos dentro da arena, somos incluídos na cena. Somos um elemento a mais. O desafio é encontrar as palavras e tornar traduzível o que é da ordem do indizível. Vi-me diante de uma narrativa em tom preciso, face às intensidades pulsionais que modulam a cena, como se o pesadelo, num recorte sinuoso, não só cortasse a carne, mas integrasse e retratasse a fantasmagoria dos detalhes, o puro insólito ao mesmo tempo atrelado a um real chocante .                   
O texto, no caso uma história advinda de uma outra cultura, precisa ser decodificado através de uma gangorra que vai ao passado e volta ao presente, um tipo de código alienado aos elementos que compõem a aridez, a estrangeridade que nos atinge a retina, forçando-nos a uma tentativa de discernimento e compreensão dessa outra língua que nos invade.Como na psicanálise, que está destinada a escutar o que não se diz, a trabalhar nas bordas para reintegrar as partes esfaceladas a um quase-todo, já que é impossível significar tudo, pois existem zonas sombrias não simbolizáveis.                               
O que fazer quando a mente está diante da precariedade da palavra?  “Incêndios” traz vários enigmas, sendo que o principal, o que mais me instiga, é apontado por Freud como imanente ao 
ser: a busca das origens. Esse mistério se atualiza nos horrores das guerras insanas e nas barbáries que elas produzem. O ser humano se perde  de si mesmo, de seus valores civilizatórios , aniquila-se e ao outro também, cavando um poço de memórias inextinguíveis. O que vemos hoje na Síria aconteceu no Líbano de Nawal. Imagens de corpos, vestígios de um emaranhado de objetos. Rastros de ódio e perda de referências.                 
Para Jean Pierre Vernant, no meio dessas perdas  e desse caos, “há um ponto originário, mítico, mágico ou sagrado” que sobrevive. Um ponto primordial chamado "Ur", prefixo alemão que significa aquilo que diz respeito à necessidade do ser humano  de saber sobre sua origem. Uma busca pelo “ur-teil, traços identificatórios originários" que definem o sujeito em sua singularidade e fazem com que ele se reconheça como tendo vindo de um lugar, de um outro ser, o que lhe ajudará a dizer quem é e para onde vai. Entretanto, as mesmas forças que entremeiam as origens saudáveis e fundantes, referem-se a um outro aspecto identitário  que contem, potencialmente, a possibilidade de um encontro com a rejeição com aquilo que é experimentado como estrangeiro e inimigo. Simon, o irmão gêmeo que sobreviveu às custas da humanidade que há na desumanidade, carrega essa faceta do horror na alma e no corpo. A  decisão de Jeanne, sua irmã, ao contrário, de percorrer os caminhos de Nawal ,sua mãe, é desencadeada assim que os nós do destino começam a se desenrolar. Ela não fecha  a multiplicidade de interpretações que haviam em torno do silêncio da mãe, como Simon. Jeanne quer saber o que lhe foi destinado através da história dessa mãe. Ela quer as origens dos fatos. Ela é a filha que quer entender o que há além do visível. Nawal é o enigma a ser decifrado porque é a origem, a fonte do mistério. E esse é um dos pontos mais notáveis dessa tragédia engendrada por Wajdi Mouawad e o que mais me tocou. Os filhos jamais conhecem de fato a história de seus pais. O que estes viveram faz parte de um tempo que só pode ser acessado através de narrativas distorcidas. Por trás de um silêncio pode haver um pacto com o horror, pode haver a brutalidade e a animalidade que habita todo ser humano. Freud sabia disso como poucos e por essa razão dedicou-se às pulsões de morte.Existem frases na peça que definem o risco que é falar e o risco que é silenciar:             
”A infância é uma faca enfiada na garganta”.                                      
“Existem histórias que não são para serem reveladas e sim descobertas”.                                     
E porque ? Porque elas obrigam aos trilhamentos, ao tempo, ao espaço interno e ao conhecimento mais profundo do próximo e de si mesmo, fazendo com que este saber traga outros sentidos à existência, outros ângulos e interpretações. Wajdi Mowawad nos leva de volta ao trágico e ao belo que os gregos nos deixaram como herança. E nos faz ler, escrever, e pensar. Muito. Como Nawal.                                   Gratíssima a todo esse elenco espetacular e à direção soberba de Aderbal Freire Filho, pela experiência inesquecível de assistir ao que pode haver de melhor num palco: a VIDA em sua dimensão mais profunda. E só quem a viveu, como provavelmente é o caso de Marieta Severo, pode ser Nawal.

Comentário
:Cara Angela obrigado por nos revelar mais ainda aquilo que procuramos trazer a cada noite para a cena no encontro com o público. Um grande abraço

Atenciosamente,

Isaac Bernat
Ator da peça











                                                                                                                                                                                                                                                          



sábado, 15 de fevereiro de 2014

PARA GUILHERME FIUZA


UFA!!! Finalmente alguém vai nas vísceras.Já ouvi de algumas pessoas que você é "reaça " demais e sempre detectei algo diferente no que você escreve. Bem para além do que um simples "reaça" faria, porque você fala de um outro lugar, pulsional, sem mais rodeios e atinge em cheio o alvo, detonando esse blá-blá-blá que é infinitamente aquém da gravidade dos fatos. Respirar está difícil nessa cidade, nesse país e não é só pelo calor avassalador. Há algo de muito podre no ar, que nos faz sentir um peso imenso no viver cotidiano. Ele, o ar, custa a passar dentro do peito E hoje, sábado 15/ 2. quando li sua crônica respirei  fundo, porque você produziu a síntese. Exagerada, dirão alguns?  No ponto, dirão outros. Sabe aquela bombinha que asmático usa para fazer o ar passar? Pois, é....você foi "a" bombinha" no meio de tantos rojões de indignação que atravessam corações, cabeças e mentes nesse momento absolutamente sombrio que estamos passando. Nem o sol infernal consegue disfarçar. 

Gratíssima.