segunda-feira, 23 de abril de 2012

PINA E O SER

Acho pobre dizer que fui assistir a um documentário. Pina não pode ser definido só assim. É mais justo dizer que fui assistir a uma homenagem extremamente sensível, prestada por aqueles que tiveram o privilégio de conviver e aprender a se expor com Pina Bausch, uma força desbravadora que ampliou os horizontes da linguagem artística e cultural,através de suas ousadas e intuitivas experimentações. Alguém que se propôs a romper,através de sua arte,com os códigos habituais e consagrados.É importante frisar aqui, que as subversões por ela produzidas não foram feitas apenas na dança. O sentido de sua obra é bem mais abrangente, pois tem a ver com a poesia e acima de tudo, com a vida. Basta ver a citação primordial dela:
“Se as palavras pudessem expressar a vida, não precisaríamos dançá-la.”
Ou seja , é à precariedade da palavra que Pina nos remete. No dicionário, precário é ”aquilo que é pouco estável, incerto, frágil, caráter ou estado do que não oferece estabilidade e segurança”, algo, portanto, que se alinha ao que é humano, ou melhor dizendo, aquilo que é relativo à existência do eu. Somos precários de nascença. Carecemos de outros recursos que nos salvem de nossas misérias existenciais. A espontaneidade da criatividade artística é a possibilidade de um certo desvelamento da existência, da quebra de um diálogo sem som consigo mesmo. Dizia Freud que as pulsões são grandiosas em sua indeterminação e que o corpo concebido pela psicanálise funciona como potência dispersa para as intensidades. Pina Bausch, com sua arte, mostra, freudianamente, que não basta ser um campo de forças. É preciso encarná-lo. É com corpos fragmentados e não com uma totalidade organizada que ela trabalha em sua tentativa de expressar o humano, o sensível.
A homenagem maior que a trupe de Pina promove, é a prova de que confrontado com o Ser, a atitude do homem deve ser de agradecimento, de um “espanto admirativo”, como diz Hannah Arendt, ao falar da análise da consciência em Heidegger, em seu livro "A Vida do Espírito". Segundo ele, o eu misturado às atribulações da vida social, preso a uma linguagem repleta de clichês necessários para a comunicação , se confunde em um mundo externo bem distinto do si. O autêntico, o eu fundamental, se perde. Hannah endossa Heidegger : “Só através do espírito do homem chamado pelo Ser, pode-se transpor para a linguagem a verdade do Ser. “
Todos os depoimentos dos artistas que trabalharam com essa extraordinária mulher, dizem respeito a essa transposição e à expansão de suas potências.
Impossível, aqui, não lembrar de Clarice Lispector, cujo desafio maior na literatura parece ter sido, também, o de ultrapassar as limitações impostas pela palavra , tentando tocar o intangível. “Sou obrigada a procurar uma verdade que me ultrapassa. Quem se indaga é incompleto”
O mundo das aparências tem o ímpeto de se apresentar através do óbvio. Somos convocados por ele a falar. Temos necessidade de explicar e justificar com palavras o que vemos, enquanto que os chineses pensam com imagens atreladas a um signo, vide sua escrita.Essas linguagens, mesmo em suas diferenças, precisam do concreto.A experiência estética, ao contrário, é aquela que transita na obscuridade, na retirada do espírito para um lugar de abstinência do entendimento ou de uma ausência de razão, que permite ao sensorial se manifestar. Quando escuto uma ópera, por exemplo, choro, mesmo sem entender determinadas palavras. Cézanne dizia ser impossível para o espectador caminhar por onde ele havia caminhado. Acho que assim fez um amigo sábio que encontrei ao sair do cinema: “Não entendi nada, mas achei belíssimo”. Perfeito. A função da razão é dar conta. Porém, só o sensível tangencia, só o afeto modifica o afeto. Eis o paradoxo: o discurso é a maneira de apropriação do humano e, ao mesmo tempo é a possibilidade de sua alienação, já que o distancia de outra ordem de introjeção.
Assistir “Pina” e não fazer uma conexão com o processo analítico é impossível. O inconsciente está presente o tempo todo nas expressões de espanto, choque, alegria, amargura e dor. Muito mais do que a arte em si, o filme fala sobre a entrega, a experiência do corpo nas paixões, a obstinação, as inquietações e a disciplina, a paciência com as diferentes temporalidades e ritmos, o que o aproxima (e muito) das vivências de uma análise.
“ Pina” é uma lição de vida, mas dela só podem participar os que não a temem.

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Um comentário:

Angela Villela disse...

Minha nega, seu caboclo escrevinhador é ultra dançarino! e mui lindo. Outra coisa: achei genial as repetições dos movimentos, especialmente quando esses eram carregados de formas informes (se me permite), alcançando a carne lá onde ela só poderia balbuciar intensidades, presentificá-las, nunca representá-las ordenadamente... esse inconsciente nos acossa a todo momento e nos obriga ao percurso da análise. Pina "apenas" nos evocou, com graça, essa dor-delícia. Maravilha!!! Bjs.pOSTADO POR Luiz Felipe Faria